Teologia da Evangelização (70)
2.4.4. A Responsabilidade Humana
2.4.4.1. O Deus Misterioso
A aceitação do paradoxo ou antinomia faz parte da própria limitação nossa diante da Revelação de Deus. Isto não significa que apreciemos os paradoxos e os busquemos. Antes, reconhecemos a clareza de temas individuais nas Escrituras, mas, ao mesmo tempo, confessamos a nossa incapacidade em relacioná-los de forma perfeita em nossa mente bastante limitada.[1]
A Escritura é suficientemente clara, mas não absolutamente clara em todas as coisas. A própria Confissão de Westminster nos instrui:
Na Escritura não são todas as coisas igualmente claras em si, nem do mesmo modo evidentes a todos; contudo, as coisas que precisam ser obedecidas, cridas e observadas para a salvação, em uma ou outra passagem da Escritura são tão claramente expostas e aplicadas, que não só os doutos, mas ainda os indoutos, no devido uso dos meios ordinários, podem alcançar uma suficiente compreensão delas. (I.7).
A Bíblia apresenta verdades antinômicas (verdades que aparentemente se contradizem), sem ter a preocupação de nos explicar a relação entre ambas; e, tanto o crente sem maiores estudos teológicos, como o teólogo,[2] são, cada um à sua maneira, tentados a explicar o que Deus não diz em Sua Palavra. Por isso, tenho afirmado com ênfase, que a Teologia não é explicativa, mas sim, descritiva; isto porque se ela explica o que já foi explicado por Deus, está na realidade descrevendo a explicação e, se por outro lado, tenta explicar o que Deus não explicou, está adentrando aos mistérios de Deus o que, além de ser inútil, visto que nada conseguimos de positivo com isso, é um ato pecaminoso.
Então, alguém perguntaria: para que a Teologia? Se ela é apenas descritiva, quem precisa dela?
Entendemos que a Teologia, especialmente a conhecida tecnicamente como Teologia Sistemática,[3] se propõe a estudar a verdade bíblica em seu todo, tentando relacionar as partes com o todo e o todo com as suas partes, declarando, assim, de forma mais ou menos sistemática, as doutrinas que não foram criadas por homens, mas sim, reveladas por Deus, do Gênesis ao Apocalipse.[4]
Creio que foi neste sentido que escreveu Lloyd-Jones (1899-1981): “O estudo bíblico é de bem pouco valor se termina em si próprio e se é principalmente uma questão de sentido das palavras. O propósito do estudo das Escrituras é chegar à doutrina”.[5]
Todas as tentativas históricas para explicar a relação ente a Soberania de Deus e a suposta liberdade humana (livre arbítrio) redundaram em fracasso, na parcialização das Escrituras.
Creio que muitos dos homens que se atiram nesta empreitada, o fazem sinceramente, como que querendo defender as Escrituras, mostrar a sua coerência e, consequentemente, do seu Autor, Deus. Entretanto, quando há uma tentativa motivada por este espírito, reconhecemos a sua boa disposição; contudo, temos que perceber a sua ignorância a respeito da Palavra e do Senhor da Palavra.
Deus não precisa ser conciliado nem explicado. A sua Palavra, em última instância não precisa de defesa; ela permanece. É por isso que nós Reformados não formulamos doutrinas, apenas reconhecemos as doutrinas que já estão, por vontade de Deus na sua Palavra, fazendo – de modo imperfeito é verdade –, o que Jesus Cristo (Lc 24.44-49) e os Apóstolos (At 2.14-36) perfeitamente fizeram; uma relação dos textos e sua aplicação correta dentro do contexto e do propósito de sua redação.[6]
Dentro dos esforços por “explicar as Escrituras” no que concerne à liberdade humana e à soberania de Deus, encontramos por um lado, a ênfase na “liberdade humana”, ao ponto de sacrificar a Soberania de Deus (Arminianismo). No outro extremo, temos a perspectiva errada da Soberania de Deus, em detrimento da liberdade-responsabilidade do homem (Hipercalvinismo). Curiosamente aqui, verifica-se mais uma vez o encontro dos extremos opostos. O hipercalvinismo e o arminianismo se tocam em seu racionalismo, na tentativa de explicar o que a Bíblia apenas descreve.
Palmer (1922-1980) age com sabedoria quando, ao tratar deste assunto, chama de “o Grande Mistério”.[7] Sem dúvida, este assunto se constitui num dos grandes mistérios de Deus. Devemos dar graças a Deus, pois, sem a sua revelação bíblica, nem a consciência de que há este mistério teríamos.
Maringá, 17 de setembro de 2022.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1]Esta compreensão é bastante forte no pensamento de Calvino. Veja-se: Edward A. Dowey, Jr., The Knowledge of God in Calvin’s Theology, New York: Columbia University Press, 1952, p. 39-40. George comenta: “Com toda sua reputação de teólogo de lógica rigorosa, Calvino preferiu viver com o mistério e a incoerência de lógica a violar os limites da revelação ou imputar culpa ao Deus que as Escrituras retratam como infinitamente sábio, completamente amoroso e absolutamente justo” (Timothy George, A Teologia dos Reformadores, São Paulo: Vida Nova, 1994,p. 209). Vejam-se também: William Edgar, Razões do Coração: reconquistando a persuasão cristã, Brasília, DF.: Refúgio, 2000, p. 116-118 (especialmente); Veja-se: João Calvino, A Providência Secreta de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2012 (apresentação de Paul Helm, p. 22-23).
[2] Para uma classificação útil a respeito dos níveis de teologia, ver: Stanley J. Grenz; Roger C. Olson, Quem Precisa de Teologia? Um convite ao estudo sobre Deus e sua relação com o ser humano, São Paulo: Vida, 2002, especialmente, p. 25-39.
[3]Pessoalmente entendo a Teologia como o estudo sistemático da Revelação Especial de Deus conforme registrada nas Escrituras Sagradas tendo como fim último o glorificar a Deus por meio do seu conhecimento e obediência à sua Palavra. Operacionalmente podemos dizer que a Teologia Sistemática é o estudo sistematizado da Revelação Especial de Deus conforme registrada nas Escrituras Sagradas, buscando uma compreensão real e harmônica de “todo o desígnio de Deus” e de suas relações intrínsecas e extrínsecas, realçando a sua relevância para a vida do povo de Deus. Cabe ainda uma palavra explicativa: a nomenclatura “sistemática”, que pode parecer redundante para alguns, é proveniente do verbo grego sunista/w, que significa: organizar, coligar, congregar. Portanto, a designação de Teologia Sistemática é pertinente visto que ela se propõe a organizar em um sistema unificado os ensinamentos bíblicos. Veja-se: Hermisten M.P. Costa, A Necessidade e a Importância da Teologia Sistemática. In: Franklin Ferreira, ed., A Glória da Graça de Deus, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2010, p. 239-261.
[4]Bem recentemente li a definição de Clark que resume bem o que eu pretendia dizer: “A teologia consiste em associar muitas passagens sobre diversos assuntos e organizá-las em um conjunto inteligível” (Gordon H. Clark, Em Defesa da Teologia, Brasília, DF.: Monergismo, 2010, p. 20). A percepção de Van Til, já citada parcialmente, quanto à Teologia Sistemática, é iluminadora: “Uma vez que esses padrões ou dogmas da igreja tenham sido aceitos, é desnecessário dizer que o teólogo que escreve uma obra de Teologia Sistemática a escreverá de acordo com a interpretação dada nesses padrões. Dizer que isso obstrui sua liberdade seria dizer que ele não adotou livremente esses credos como membro da igreja. Entretanto, interpretar de acordo com esses padrões não significa ignorar as Escrituras. Deve ser mostrado repetidamente que os padrões são baseados nas Escrituras. Além disso, o teólogo sistemático tem que ir além dos padrões para ver se pode encontrar, possivelmente, uma formulação mais específica de verdades já faladas nos padrões e se pode encontrar uma formulação de verdades das Escrituras ainda não faladas nos padrões” (Cornelius Van Til, An Introduction to Systematic Theology, Phillipsburg, New Jersey: Presbyterian and Reformed Publishing Co. 1974, p. 4).
[5]D.M. Lloyd-Jones, Por Que Prosperam os Ímpios?, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1983, p. 101.
[6]F.F. Bruce (1910-1990) está correto, ao afirmar que: “Os crentes possuem um padrão permanente e um modelo no uso que nosso Senhor fez do Antigo Testamento, e uma parte do atual trabalho do Espírito Santo no tocante aos crentes é abrir-lhes as Escrituras, conforme o Cristo ressurreto as abriu para os dois discípulos no caminho para Emaús (Lc 24.25ss)” (F.F. Bruce, Interpretação Bíblica: In: J.D. Douglas, ed. org. O Novo Dicionário da Bíblia,São Paulo: Junta Editorial Cristã, 1966, v. 2, p. 753). Vejam-se também: João Calvino, As Institutas,I.9.3; II.8.7.
[7] E. H. Palmer, Doctrinas Claves, Carlisle, Pennsylvania: El Estandarte de la Verdad, 1976, p. 142.