Teologia da Evangelização (55)
2.4.3.2.2.8.2. Conversão teológica e salvífica
A conversão é algo extremamente difícil. Como ela envolve uma ruptura com o nosso antigo e habitual caminhar, resultante de uma visão de mundo fortalecida em nossa miopia pelo aparente sucesso, é dificílimo aos seres humanos realizar esta transformação por si só. Isso, se pudéssemos perceber a “roubada” na qual nos metemos desde o nascimento.
M’Cheyne (1813-1843) em um sermão (1835) faz um apelo ao homem distante de Deus que cultiva uma visão otimista e ilusória a seu próprio respeito: “Esteja determinado a conhecer o pior de si mesmo; pois só assim você verá o quanto é desejável a conversão, a excelência de Cristo”.[1]
A conversão é obra do Trino Deus. Somente Ele pode atingir o cerne de nosso coração o transformando, lhe concedendo uma nova visão, sentimento, direção e capacitação. O Deus que nos criou, nos recria em Cristo para as boas obras que Ele mesmo preparou para nós: “Pois somos feitura (poi/hma = “obra de arte”)[2] dele, criados (kti/zw)[3]em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas” (Ef 2.10).
Com base no texto de Efésios, podemos dizer que o homem é o mais belo poema de Deus, criado em Cristo Jesus nosso Senhor!
Quando Paulo e Barnabé chegam a Listra e curam um paralítico, são confundidos com Mercúrio e Júpiter respectivamente. O povo idólatra quis adorá-los,[4] ao que Paulo e Barnabé reagiram firmemente, gritando:“Senhores, por que fazeis isto? Nós também somos homens como vós, sujeitos aos mesmos sentimentos, e vos anunciamos o evangelho para que destas cousas vãs (Ma/taioj)[5] vos convertais ao Deus vivo….” (At 14.15).
O Evangelho reivindica a conversão do homem, que deixa a ignorância, as trevas, e a idolatria e volta-se para Deus (At 11.21; 26.18; 1Ts 1.9; 1Pe 2.25).
A conversão é a junção exercitada do arrependimento (mudança de mente e de coração) e da fé, uma confiança sem reservas, depositada unicamente em Deus e nas suas promessas. A conversão é o sinal indicativo de nossa fé, arrependimento e justificação, acompanhado necessariamente de nosso compromisso histórico e existencial de santificação.
Em Tessalônica, vemos que um fato que se tornou notório foi a conversão a Deus e o abandono da idolatria por parte dos tessalonicenses. Paulo registra esse fato: “Pois eles mesmos, no tocante a nós, proclamam que repercussão teve o nosso ingresso no vosso meio, e como, deixando os ídolos, vos convertestes a Deus, para servirdes o Deus vivo e verdadeiro” (1Ts 1.9).[6]
Portanto, o Evangelho com o seu poder transformador (Rm 1.17) visa fazer com que o homem abandone as cousas vãs, como, por exemplo, a idolatria e as crendices pagãs, colocando toda a sua confiança em Deus e em suas promessas.
A conversão é a consciência prática da regeneração e da vocação, marcada por autêntico arrependimento e fé em Jesus Cristo.[7] Na conversão temos uma história da graça de Deus no passado (regeneração, arrependimento, fé, justificação), do presente (santificação) e uma esperança fundamentada quanto ao futuro (glorificação) (Rm 8.29-30; Fp 1.6).
Portanto, esta consciência se caracteriza pelo abandono do pecado e uma volta do pecador regenerado para Deus em arrependimento e fé. A conversão se evidencia por um novo direcionamento. “O eleito, nascido de novo e eficazmente chamado, se converte. Permanecer não convertido é impossível, mas ele inclina seu ouvido, ele vira sua face para o Deus bendito, ele é convertido no sentido mais pleno da palavra”, acentua Kuyper.[8] Tudo isso, é obra do Espírito Santo de Deus.
É Deus quem converte o homem do domínio de Satanás para o seu Reino (At 26.18/At 11.21,23/1Tm 1.12-14).[9] A conversão se demonstra em nossa caminhada, que deve se coadunar com a nossa natureza transformada pelo Espírito Santo. Agora, as coisas velhas passaram.
A conversão é uma evidência de nossa justificação e regeneração, não a causa, que é totalmente pela graça.[10] Assim como não há autogeração humana, não existe autoconversão. A origem de nossa vida espiritual é graça. É graça incompreensível, porém, demonstrável.
Bavinck, coloca nestes termos:
A verdadeira conversão surge da tristeza piedosa, isto e, uma tristeza em harmonia com a vontade de Deus, uma tristeza que, portanto, não é meramente de caráter ético, mas também de caráter religioso, pertence a Deus, sua vontade e sua palavra e ao pecado como pecado até mesmo independente de suas consequências. Ela é requerida por Deus, mas também é dada por Deus com um dom.[11]
Portanto, deve ser dito que este ato não é algo superficial, envolvendo apenas uma mera mudança de igreja, denominação ou de um conjunto de crenças, antes, se caracteriza por uma volta a Deus com integridade de coração em total obediência.[12]
Hoekema (1913-1988) define: “A conversão pode ser definida como o ato consciente de uma pessoa regenerada, no qual ela se volta para Deus em arrependimento e fé. Isso envolve um duplo retorno: para longe do pecado e na direção do serviço de Deus”.[13]
Maringá, 07 de setembro de 2022.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] Robert Murray M’Cheyne, A Dificuldade e a Desejabilidade da Conversão, O Estandarte de Cristo. 2016, Edição do Kindle, p. 11.
[2] Poi/hma, quer dizer “o que é feito”, “obra”, “criação”, “obra-prima”, “obra de arte”, especialmente um produto poético. O nome da obra de Aristóteles (384-322 a.C.) que foi traduzida para o português com o título de “Poética”, em grego, intitula-se, Peri\ poihtikh/j. Aliás, são estas as palavras com as quais Aristóteles inicia a sua obra. (Vejam-se entre outros: F.F. Bruce, The Epistle to the Ephesians, a Verse-by-verse Exposition, Londres: Pickering & Inglis, 1961, in loc; M. Barth, The Anchor Bible: Ephesians, Garden City, New York: Doubleday, 1974, v. 1, in loc; Poi/hma: In: William F. Arndt; F.W. Gingrich, A Greek-English Lexicon of the New Testament and Other Early Christian Literature, 2. ed. Chicago, University Press, 1979, p. 689; Poi/hma: A Lexicon Abridged from Liddell and Scott’s Greek-English Lexicon, London: Clarendon Press, 1935, p. 568). Para um estudo mais detalhado do verbo poie/w e de seus cognatos, Vejam-se: H. Braun, poie/w: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, v. 6, p. 458-484; C. F. Thiele, Trabalhar: In: Colin Brown, ed. ger.O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, v. 4, p. 649-652.
[3] Kti/zw, indica uma nova criação de Deus efetuada em Cristo (* Mc 13.19; Rm 1.25; 1Co 11.9; Ef 2.10,15; 3.9; 4.24; Cl 1.16 (2 vezes); 3.10; 1Ts 4.3; Ap 4.11; 10.6). Nesta palavra, como bem observa Lenski, temos o equivalente ao verbo hebraico )frfB, “chamar à existência do nada” (R.C.H. Lenski, The Interpretation of St. Paul´s Epistles to the Ephesians, Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 1998, p. 425). Para um estudo mais detalhado, Vejam-se: W. Foerster, kti/zw: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, v. 3, p. 1000-1035; H.H. Esser, Criação: In: Colin Brown, ed. ger.O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, v; 1, p. 536-544).
[4] Quanto aos antecedentes mitológicos desta região que possibilitaram a referida confusão, ver: Hermisten M.P. Costa, Eu Creio: no Pai, no Filho e no Espírito Santo, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2014.
[5] “Sabendo que não foi mediante coisas corruptíveis, como prata ou ouro, que fostes resgatados do vosso fútil procedimento (matai/aj u(mw=n a)nastrofh=j)que vossos pais vos legaram, mas pelo precioso sangue, como de cordeiro sem defeito e sem mácula, o sangue de Cristo” (1Pe 1.18-19). Ma/taioj = Vão, fútil, tolo, sem valor. (*At 14.15; 1Co 3.20; 15.17; Tt 3.9; Tg 1.26; 1Pe 1.18). Mataio/thj = Vaidade, futilidade, vacuidade (*Rm 8.20; Ef 4.17; 2Pe 2.18). “Na literatura grega, mataios e seus cognatos têm como pano de fundo certos valores estabelecidos, padrões morais, realidades religiosas, verdades e fatos reconhecidos. A conduta de qualquer pessoa que os deixa passar despercebidos, deliberadamente ou sem ser consciente disso, cai sob o julgamento de ser mataios” (E. Tiedtke, Vazio: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, v. 4, p. 692).
[6] M’Cheyne (1813-1843) pregando em 1835, faz uma apelo emocionante: “Quantos ao seu redor ainda não são convertidos, estão no poço e no lodo! Deixe-os ver, então, quão grandes coisas Deus fez por vocês, para que temam e não morram sem conversão; para que esta mudança gloriosa chegue a eles; para que não morram como velhas criaturas, habitantes do lago horrível, para serem removidos da cova eterna; para que não sejam completamente engolidos pelo charco de lodo; e, assim, movidos pelo temor, eles possam ser persuadidos a confiar em Deus, como você tem feito — descansar na Rocha, Cristo, para justiça” (Robert Murray M’Cheyne, A Dificuldade e a Desejabilidade da Conversão, O Estandarte de Cristo. 2016, Edição do Kindle, p. 12).
[7] Após redigir essas linhas, deparei-me com a conceituação de Lloyd-Jones: “[Conversão] é o passo inicial na consciência histórica da alma em sua relação com Deus; é o primeiro exercício, a primeira manifestação da nova vida que foi recebida na regeneração” (D. Martyn Lloyd-Jones, Deus o Espírito Santo,São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1998, p. 154).
[8] Abraham Kuyper, A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 365.
[9]“Para lhes abrires os olhos e os converteres (e)pistrefw = “voltar”, “retornar”) das trevas para a luz e da potestade de Satanás para Deus, a fim de que recebam eles remissão de pecados e herança entre os que são santificados pela fé em mim” (At 26.18). “21 A mão do Senhor estava com eles, e muitos, crendo, se converteram (e)pistrefw) ao Senhor. 22 A notícia a respeito deles chegou aos ouvidos da igreja que estava em Jerusalém; e enviaram Barnabé até Antioquia. 23 Tendo ele chegado e, vendo a graça de Deus, alegrou-se e exortava a todos a que, com firmeza de coração, permanecessem no Senhor” (At 11.21-23). “12 Sou grato para com aquele que me fortaleceu, Cristo Jesus, nosso Senhor, que me considerou fiel, designando-me para o ministério, 13 a mim, que, noutro tempo, era blasfemo, e perseguidor, e insolente. Mas obtive misericórdia, pois o fiz na ignorância, na incredulidade. 14Transbordou, porém, a graça de nosso Senhor com a fé e o amor que há em Cristo Jesus” (1Tm 1.12-14).
[10] “A conversão é o sinal, mas não a condição, da nossa justificação, cuja única origem é a graça de Deus, livre e incondicional” (D.G. Bloesch, Conversão: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã. São Paulo: Vida Nova, 1988-1990, v. 1, p. 354).
[11]Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 4, p. 141.
[12] Vejam-se: M.C. Tenney, Conversão: In: Carl Henry, org., Dicionário de Ética Cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 142; Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 4, p. 156.
[13] Anthony Hoekema, Salvos pela Graça: A doutrina bíblica da salvação, São Paulo: Cultura Cristã, 1997, p. 119.