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Teologia da Evangelização (18) - Hermisten Maia

Teologia da Evangelização (18)

2.4.3. A Soberania de Deus e de sua graça 

A doutrina da soberania divina seria grosseiramente mal aplicada se porventura a invocássemos de uma maneira tal que viesse a diminuir a urgência, o impulso, a prioridade e o constrangimento obrigatório do imperativo evangelístico. – J.I. Packer (1926-2020).[1]

As Escrituras também declaram que Deus como Criador tem o domínio sobre sua criação. Ele é o senhor e dono de toda a terra.

            O salmista enfatizando a grandeza de Deus, registrou: “Derretem-se como cera os montes, na presença do SENHOR, na presença do Senhor de toda a terra” (Sl 97.5).[2]

            No Salmo 2 vemos ilustrados aspectos do poder de Deus. Lemos o Pai falando ao Filho: 8 Pede-me, e eu te darei as nações por herança e as extremidades da terra por tua possessão. 9 Com vara de ferro as regerás e as despedaçarás como um vaso de oleiro” (Sl 2.8-9).

            Como tudo lhe pertence, Deus pode oferecer ao Filho todas as coisas. Na sua promessa, não há hipérbole ou exagero de um rei que se vê maior do que é. Tudo lhe pertence.

            Todas as coisas existem nele. Até mesmo seus opositores pertencem e são preservados por Deus: “Ao SENHOR pertence a terra e tudo o que nela se contém, o mundo e os que nele habitam” (Sl 24.1).

            Deste modo, o governo de Cristo é universal, envolvendo todas as nações.

            Aliás, Deus seria o Senhor se o seu reinado não se estendesse a todas as coisas?[3] Não. Por isso, não há nenhum tipo de problema de esfera nem de jurisdição; tudo lhe pertence.

O anúncio por parte da igreja do Senhorio de Cristo é um alerta para que todos percebam a realidade premente de sua mensagem. Não se trata de arrogância, presunção ou uma mensagem bombástica apenas para criar debate ou frisson, antes, é a verdade absoluta que pode mudar a nossa vida, conferindo sentido à história, à vida e à morte.

            McGrath ilustra esse ponto: “A insistência evangélica na importância da evangelização é, portanto, uma consequência inteiramente apropriada e natural de sua cristologia; se Jesus Cristo é de fato Salvador e Senhor, ele precisa ser proclamado ao mundo como tal”.[4]

            O Senhor governa sobre grandes e pequenos. Por isso a rebelião de todas as classes. Na ignorância espiritual de todos, devido ao pecado de toda a humanidade, há rebeldia contra Deus e o seu Ungido.

            O pecado entre as suas artimanhas de sobrevivência e fortalecimento, se vale da concessão da falsa sensação de liberdade. Todos queremos ser livres.  O trágico é que justamente o pecado, o mais escravizador de todos os senhores (Jo 8.34), que nos conduz a todo tipo de amarras, nos levando a multifacetados vícios escravizantes, faz-nos pensar que a liberdade buscada, o sentido da vida perseguido, está justamente no vício. Que tragédia! O supremo encarcerador nos fascina com a promessa de total liberdade. É precisamente por isso que, dominados por  esse engano, o governo de Cristo é considerado como “laços” e “algemas” (cordas, correntes) pelos incrédulos (Sl 2.3).

            Harman comenta: “Os homens pecaminosos nunca se dispõem a andar dentro das fronteiras que Deus impõe às suas criaturas. Em sua arrogância, declaram sua suposta liberdade e reivindicam ser senhores de seus próprios destinos”.[5]

            Spurgeon (1834-1892) descreve a união maligna e intensa desses homens contra o Messias: “Com malícia determinada se organizam em oposição a Deus. Não foi um alvoroço e fúria passageiros, mas um ódio profundo, porque resolveram de modo claro resistir ao Príncipe da Paz”.[6]

            As “extremidades da terra” (Sl 2.8) são possessões do Senhor. Não há quem possa dizer-lhe: isto não lhe pertence. Não há um centímetro sequer de toda a criação que não seja abrangido pela totalidade do poder governativo de Deus.[7] Tudo pertence a Deus. Nenhum rei “governa senão pela vontade de Deus”.[8] Portanto, reivindicar qualquer autonomia ou qualquer forma de exclusão do poder de Deus, mantendo-o alheio, consiste em um atentado à sua soberania.[9]

            A “vara de ferro” (Sl 2.9) tipifica apenas um aspecto de seu domínio: a sua força. A vara de ferro forjado é resistente para isso. Como o contexto do Salmo é de rebeldia, é natural que seja realçada a sua força contra os opositores. Na realidade, o Reinado de Cristo também é de paz e fraternidade.

            Calvino comenta:

Todos quantos não se submetem à autoridade de Cristo fazem guerra contra Deus. Visto que a Deus apraz governar-nos pela mão de seu próprio Filho, aqueles que se recusam a obedecer ao próprio Cristo negam a autoridade de Deus, e lhes é debalde fazer uma profissão de fé diferente.[10]

Cristo é munido com poder pelo qual possa reinar mesmo sobre aqueles que se opõem à sua autoridade e recusam obedecê-lo.[11]

            Uma tentação comum a todos nós é criar um dualismo entre a fé e a nossa forma de ver e atuar no mundo. É como se nossos sentimentos fossem sinceramente entregues a Deus, mas, a nossa mente em toda a sua racionalidade supostamente autônoma, me pertencesse, excluindo Deus de cena. Assim, criamos em nossa vida privada um muro de contenção onde Deus não pode passar nem a sua Palavra ser ouvida. Por trás dessa bem elaborada dicotomia, há um tipo de fé que seu proponente nem desconfia. É impossível caminhar sem fé.[12]

            O reinado de Cristo envolve toda a Criação, todos os poderes e todas as áreas de nossa existência. Deus é Deus, por isso, somente Ele tem todo o poder. Somente Ele é Deus! Ele reina sobre todas as coisas e sobre cada coisa em particular.

Sproul, expõe bem esta questão:

Quando falamos de soberania divina, estamos falando sobre autoridade de Deus e sobre o poder de Deus. Como soberano, Deus é a suprema autoridade do céu e da terra. Toda outra autoridade é uma autoridade menor. Toda outra autoridade que existe no universo é derivada e dependente da autoridade de Deus. Todas as outras formas de autoridade existem ou pela ordem de Deus ou pela permissão de Deus.

A palavra autoridade contém em si a palavra autor. Deus é o autor de todas as coisas sobre as quais Ele tem autoridade. Ele criou o universo. Ele possui o universo. Sua propriedade lhe dá certos direitos. Ele pode fazer com seu universo o que for agradável à sua santa vontade.

Da mesma maneira, todo o poder no universo flui do poder de Deus. Todo o poder no universo é subordinado a Ele. Até mesmo Satanás não tem poder para agir sem a soberana permissão de Deus.

Cristianismo não é dualismo. Não cremos em dois poderes extremos iguais, trancados numa luta eterna pela supremacia. Se Satanás fosse igual a Deus, não teríamos nenhuma confiança, nenhuma esperança do bem triunfando sobre o mal. Estaríamos destinados a um impasse eterno entre duas forças iguais e opostas.[13]

            Paulo sabendo da astúcia de satanás e da fragilidade espiritual dos coríntios, os instrui uma vez que eles davam crédito aos falsos apóstolos que, usados por satanás, os afastavam da simplicidade do evangelho:

Mas receio que, assim como a serpente enganou a Eva com a sua astúcia (panourgi/a[14] = “ardil”, “truque”, “maquinação”, “trapaça”), assim também sejam corrompidas as vossas mentes (no/hma), e se apartem da simplicidade e pureza devidas a Cristo. (2Co 11.3).

            Esta é uma forma sistemática de satanás atuar, obscurecendo a mente (no/hma) dos homens.

            Satanás pensou por Eva. Eva, como não se deteve na Palavra de Deus, posteriormente, pensou pensar por si. Mas, sem perceber, refletiu o pensamento de satanás que pensa e age de modo contrário a Deus.

            Paulo após falar dos desígnios (no/hma)[15] de satanás (2Co 2.11) – indicando a ideia de que ele tem metas definidas, estratégias elaboradas, um programa de ação com variedades de técnicas e opções a serem aplicadas conforme as circunstâncias[16] – diz que “O deus deste século cegou os entendimentos (no/hma) dos incrédulos, para que lhes não resplandeça a luz do evangelho da glória de Cristo, o qual é a imagem de Deus” (2Co 4.4).

            Vivemos em uma atmosfera contrária à fé cristã, uma má vontade para com a verdade, uma estrutura de pensamento totalmente secularizada onde não há lugar para Deus, valores e conceitos transcendentes e objetivos. O pecado afeta a totalidade do homem, inclusive o seu intelecto.[17] Assim, criamos um universo de valor privado onde a verdade é de cada um dentro dos significados subjetivos circunstanciais.

            Veith diz que, “normalmente, não são os argumentos específicos contra o Cristianismo que perturbam a fé de uma pessoa, mas toda a atmosfera do pensamento contemporâneo”.[18]

            O clima intelectual de uma época é sempre fortemente influenciador de nossa estrutura de pensamento e, portanto, de nossas prioridades e valores. A força deste “clima” talvez repouse sobre a sua configuração óbvia e normativa com que ele se apresenta à nossa mente.

É quase impossível ter a percepção de algo que nos conduz – como também a nossos parceiros de entendimento – de forma tão suave. Por isso, o simples – ainda que não seja tão simples assim – fato de podermos pensar com clareza, sem estes condicionantes, é uma bênção inestimável de Deus.[19] “O pecado é anti-intelectual”, conclui Veith.[20]

Maringá, 16 de julho de 2022.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa



[1] J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus,2. ed. São Paulo: Vida Nova, 1990, p. 26.

[2] Vejam-se também: Js 3.11,13; Mq 4.13; Zc 4.14; 6.5.

[3]Veja-se: William Edgar, Razões do Coração: reconquistando a persuasão cristã, Brasília, DF.: Refúgio, 2000, p. 117.

[4]Alister E. McGrath, Paixão pela Verdade: a coerência intelectual do Evangelicalismo, São Paulo: Shedd Publicações, 2007, p. 42.

[5]Allan Harman, Comentário do Antigo Testamento ‒ Salmos, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, (Sl 2), p. 79.

[6]C.H. Spurgeon, El Tesoro de David, Barcelona: CLIE., (1989), v. 1, (Sl 2.2), p. 19)

[7]É bastante conhecida a declaração de Kuyper, quando, realizando um antigo sonho, falou na Aula Inaugural na Universidade Livre de Amsterdã em 20 de outubro de 1880, expressando a sua cosmovisão que caracterizaria aquela Instituição: Nenhuma única parte do nosso universo mental deve ser hermeticamente fechado do restante. (…) Não existe um centímetro quadrado no domínio inteiro de nossa existência humana sobre o qual Cristo, que é Soberano sobre tudo, não reivindique: ‘É meu!’” (Abraham Kuyper, Sphere Sovereignty: In: James D. Bratt, ed. Abraham Kuyper: A centennial reader, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1998, p. 488).

[8]João Calvino, O Profeta Daniel: Capítulos 1-6, São Paulo: Parakletos, 2000, v. 1, (Dn 2.36-39), p. 148.

[9] Veja-se: Vern S. Poythress, O Senhorio de Cristo: servindo o nosso Senhor o tempo todo, com toda a vida e de todo o nosso coração, Brasília, DF.: Monergismo, 2019, p. 13-14.

[10]João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 2.1-2), p. 61.

[11]João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1, (Sl 2.9), p. 71.

[12] Veja-se: Hermisten M.P. Costa, A fé como boa obra e a boa obra da fé, Goiânia: Cruz, 2019, p. 13-18.

[13] R.C. Sproul, Eleitos de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 1998, p. 19-20.

[14] Ocorre 5 vezes no NT.: Lc 20.23; 1Co 3.19; 2Co 4.2; 11.3; Ef 4.14.

[15]A palavra traduzida por “desígnio” (no/hma) ocorre cinco vezes no NT., sendo utilizada apenas por Paulo: 2Co 2.11; 3.14; 4.4; 10.5; 11.3; Fp 4.7, tendo o sentido de “plano” (Platão, Político, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 3), 1972, 260d), “intenção maligna”, “intrigas”, “ardis”. Com exceção de Fp 4.7, a palavra sempre é usada negativamente no NT. No/hma é o resultado da atividade do nou=j (mente). (J. Behm; E. Wurthwein, noe/w, etc.: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, v. 4, p. 960). “É a faculdade geral do juízo, que pode tomar decisões e pronunciar certos ou errados os vereditos, conforme as influências às quais têm sido expostas” (J. Goetzmann, Razão: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, v. 4, p. 32).

[16] “Satanás não tem propósitos construtivos; suas táticas são simplesmente para contrariar a Deus e destruir os homens” (J.I. Packer, Vocábulos de Deus,São José dos Campos, SP. Fiel, 1994, p. 82-83).

[17]“O diabo de tal maneira enfeitiça as mentes dos homens que eles se apegam obstinadamente aos erros que em tempos passados assimilaram” (João Calvino, O Profeta Daniel: 1-6,São Paulo: Parakletos, 2000, v. 1, (Dn 3.2-7), p. 193). Calvino também observa que os “incrédulos se encontram tão intoxicados por Satanás, que, em seu estupor, não têm consciência de sua miséria” (J. Calvino, As Pastorais,São Paulo: Paracletos, 1998, (2Tm 2.26), p. 247).

[18]Gene Edward Veith, Jr., De todo o teu entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 49.

[19]Ver: John MacArthur Jr., Abaixo a ansiedade,São Paulo: Cultura Cristã, 2001, p. 32.

[20]Gene Edward Veith, Jr., De todo o teu entendimento, p. 72.

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