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Teologia da Evangelização (17) - Hermisten Maia

Teologia da Evangelização (17)

2.4.2.3.2. Desconsideração da Santidade de Deus revelada na cruz

A falsa intimidade com Deus o nivela à nossa dimensão pecaminosa na qual a sua glória não pode ser vista nem o nosso pecado realmente avaliado. Onde o pecado não é considerado ou dimensionado corretamente, só nos resta uma graça barata, totalmente destituída da santidade e justiça de Deus.

            Devido à depravação de nossa natureza, todos pecamos e somos responsáveis diante de Deus. A proximidade de Deus nos faz mais sensíveis a isso. A contemplação da sua gloriosa santidade realça de forma eloquente a gravidade de nosso pecado.[1]

            Diversos servos de Deus ilustram este fato: Pedro, após pesca maravilhosa, registra Lucas,“prostrou-se aos pés de Jesus, dizendo: Senhor, retira-te de mim, porque sou pecador” (Lc 5.8).

            Paulo, o apóstolo de Cristo, que tinha uma visão correta da glória de Deus e da sua dimensão espiritual, escreve: “….Cristo veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o principal” (1Tm 1.15).

            Esta experiência foi comum também a Moisés, Jó, Isaías, Ezequiel, Daniel e João (Vejam-se: Ex 3.6; Jó 42.5-6; Is 6.1-5; Ez 1.28; Dn 10.9; Ap 1.17). O fato é que jamais poderemos ser santos sem que antes e durante, tenhamos a consciência de nosso pecado.

            De modo enfático assevera Lloyd-Jones (1899-1981): “Nunca houve um santo sobre a face da terra que não tenha visto a si mesmo como um vil pecador; de modo que se você não sente que é um vil pecador, não é parecido com os santos”.[2]

No entanto, como o nosso conhecimento de Deus é menor do que estes homens tiveram, a nossa consciência do pecado também é diminuta. A contemplação da santidade de Deus ilumina as nossas trevas, mostrando-nos como realmente somos e o quanto necessitamos de Deus.

            Enquanto para nós as circunstâncias servem de pretexto para os nossos atos pecaminosos e os posteriores atenuantes, para Deus tais circunstâncias – sobre as quais tem total domínio: Ele também é o Senhor das circunstâncias – oportunizam a manifestação do que Ele é em sua essência.

            O pecado não tornou Deus misericordioso, santo ou justo. Ele é eternamente misericordioso, santo e justo. No entanto, o pecado propiciou a Deus, por sua livre graça, revelar-se desta forma para conosco.[3] Na cruz vemos a manifestação gloriosa dos atributos de Deus. “A justiça e o amor se encontraram e se abraçaram. Os santos atributos de Deus são glorificados juntamente na morte do Filho de Deus na cruz”, comenta Lloyd-Jones .[4]

  A nossa dívida foi paga. Nada ficou pendente. Cristo satisfez completamente as santas e justas exigências do Pai. Tudo foi pago pela graça e com justiça. A Trindade nos justifica (At 13.39; Rm 8.30,33; 1Co 6.11).

            Não haveria para nenhum de nós salvação de nossos pecados sem a justificação. Da mesma forma, existe a justificação porque Jesus Cristo é a nossa justiça; é Ele mesmo quem nos redime (1Co 1.30).[5]

2.4.2.3.3. A Cruz realça a justiça gloriosa de Deus e o seu invencível amor

O pecado fala de nossa condenação e, portanto, da nossa necessidade de salvação. A cruz revela este fato e, de forma gloriosa, nos mostra o caráter santo e justo de Deus.

    Sem a justiça de Deus não haveria condenação para os nossos pecados, conforme escreve Lloyd-Jones:

Se Deus perdoasse o pecado sem contudo ministrar sua justiça, deixaria de ser Deus. A maravilha deste plano é que Deus, ao colocar os nossos pecados sobre Cristo e ao tratar deles punindo-os em Cristo, pode perdoar-nos e ainda ser justo. Ele puniu o pecado, não o esqueceu, não o ignorou.[6]

            Jamais poderemos entender o sentido da grandiosidade do perdão concedido por Deus sem a percepção adequada da nossa ofensa ao Deus Santo.[7] O perdão sempre parecerá pequeno àquele que tem a falsa percepção de ser pequena a sua dívida e uma grandiosa visão de suas potencialidades.

            Comenta Stählin (1900-1985):

Somente aquele que conhece a grandeza da ira será dominado pela magnitude da misericórdia. Do mesmo modo é verdade: Somente aquele que experimentou a magnitude da misericórdia pode mensurar de quão grande ira somos devedores.[8]

            A certeza do perdão gratuito de Deus não deve nos levar a barateá-lo. Pense na gravidade do seu pecado e na obra vicária de Cristo. Sem o derramamento do sangue do Cordeiro, não haveria remissão de pecados: todos pereceríamos. Calvino acentua: “Jamais aplicaremos seriamente o perdão divino, enquanto não tivermos obtido uma visão tal de nossos pecados, que nos inspire terror”.[9]

            Stott (1921-2011) coloca este ponto em cores vivas:

          Quando (…) tivermos um vislumbre da deslumbrante glória da santidade divina, e formos convencidos de nosso pecado pelo Espírito Santo de tal modo que tremamos na presença de Deus e reconheçamos o que somos, a saber, pecadores que merecem ir para o inferno, então, e somente então a necessidade da cruz ficará tão óbvia que nos espantaremos de jamais tê-la visto antes.

O pano de fundo essencial da cruz, portanto, é uma compreensão equilibrada da gravidade do pecado e da majestade de Deus. Se diminuirmos uma delas, diminuímos a cruz.[10]

            A Trindade bendita em seu amor e santidade provê a salvação do pecador propiciando a paz: “A cruz trouxe a paz, embora não houvesse paz na cruz. Foi uma cena caótica, mas a cruz proporcionou a justiça que, por si só, traz a paz verdadeira”, comenta MacArthur.[11]

            A cruz revela a grandeza de nossa dívida, a santidade de Deus e o seu infinito amor. Portanto, quanto ao passado podemos nos enternecer em ação de graças pela misericórdia de Deus. Quanto ao presente devemos firmar em Cristo a nossa fé em resposta ao seu amor incomensurável. Quanto ao futuro devemos descansar confiantes em sua providência.

            Paulo, considerando a bendita realidade da obra do Trino Deus, manifesta-se em ação de graças:

Graça a vós outros e paz, da parte de Deus, nosso Pai, e do nosso Senhor Jesus Cristo, o qual se entregou a si mesmo pelos nossos pecados, para nos desarraigar deste mundo perverso, segundo a vontade de nosso Deus e Pai, a quem seja a glória pelos séculos dos séculos. Amém! (Gl 1.3-5).

2.4.2.4. A ação da Igreja

Portanto, todo o labor evangelístico da Igreja se ampara neste pressuposto fundamental: todos os homens pecaram, distanciando-se de Deus, o seu Criador, em quem somente há vida.

            A Igreja anuncia o Evangelho sabendo que o homem nada pode fazer para voltar à vida; todos estão mortos em seus delitos e pecados (Ef 2.1,5). Lloyd-Jones está correto ao declarar que “…. é completamente antiescriturístico favorecer qualquer tipo de evangelização que negligencie a doutrina sobre o pecado”.[12]

            A cruz fornece o fundamento de pregação. Não há pregação sem a conscientização da gravidade do pecado e da redenção definitiva por meio de Cristo, o Deus eterno, na cruz.

            A Igreja evangeliza consciente de que o pecado envolve de forma terrível e desumanizante toda a raça humana; ela sabe que a cura para o homem não está nele mesmo, mas, em Jesus Cristo, aquele que restaura a nossa verdadeira humanidade.

            Somente o Deus Criador pode restaurar definitivamente as suas criaturas. Ele se dispôs a isso por meio de seu Filho amado que deu a sua vida pelo seu povo (Jo 3.16), confiando esta mensagem à Igreja, que proclama o Evangelho do poder de Deus (Rm 1.16), reivindicando que todos os homens se arrependam de seus pecados e, por graça, tornem-se para Deus. Este é o testemunho do apóstolo Paulo:

Ora, tudo provém de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo e nos deu o ministério da reconciliação, a saber, que Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não imputando aos homens as suas transgressões, e nos confiou a palavra da reconciliação. De sorte que somos embaixadores em nome de Cristo, como se Deus exortasse por nosso intermédio. Em nome de Cristo, pois, rogamos que vos reconcilieis com Deus. Aquele que não conheceu pecado, ele o fez pecado por nós; para que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus. E nós, na qualidade de cooperadores com ele, também vos exortamos a que não recebais em vão a graça de Deus (porque ele diz: Eu te ouvi no tempo da oportunidade e te socorri no dia da salvação; eis, agora, o tempo sobremodo oportuno, eis, agora, o dia da salvação). (2Co 5.18-6.2).

Maringá, 16 de julho de 2022.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] Ver: Hermisten M.P. Costa, O Pai Nosso, São Paulo: Cultura Cristã, 2001; J.I. Packer, Vocábulos de Deus, p. 63-64.

[2] David M. Lloyd-Jones, O Clamor de um Desviado: Estudos sobre o Salmo 51,São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1997, p. 40.

[3] Watson (c. 1620-1686) disse que “A justificação é uma misericórdia provinda das entranhas da livre graça” (Thomas Watson, A Fé Cristã, estudos baseados no breve catecismo de Westminster, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 264).

[4] David Martyn Lloyd-Jones, Uma Nação sob a Ira de Deus: estudos em Isaías 5, 2. ed. Rio de Janeiro: Textus, 2004, p. 222.

[5]Ver: John Murray, Redenção: Consumada e Aplicada, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1993, p. 19.

[6]D.M Lloyd-Jones, Salvos desde a Eternidade, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2005 (Certeza Espiritual: v. 1), p. 53. Veja-se também as páginas 105-106; William Hendriksen, O Evangelho de João, São Paulo: Cultura Cristã, 2004(Jo 17.1), p. 754.

[7]Vejam-se: A. Booth, Somente pela Graça,São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1986, p. 15, 31; J.I. Packer, O Conhecimento de Deus, São Paulo: Mundo Cristão, 1980, p. 121; James M. Boice, O Evangelho da Graça, São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 106.

[8] Gustav Stählin, o)rgh/, etc.: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1983 (Reprinted), v. 5, p. 425. Veja-se também: John Murray,Redenção: Consumada e Aplicada, p. 20-21.

[9] João Calvino, O Livro dos Salmos,v. 2, (Sl 51.3), p. 424.

[10] John R.W. Stott,A Cruz de Cristo,Florida: Editora Vida, 1991, p. 99. “Quando a percepção que temos de Deus e do homem, da santidade e do pecado, é tortuosa, então nossa compreensão da expiação provavelmente também será tortuosa” (John R.W. Stott, A Cruz de Cristo,p. 78). “A revelação do inferno na Escritura pressupõe uma profundidade de discernimento da santidade divina e da pecaminosidade humana e demoníaca que a maioria de nós não tem” (J.I. Packer, Teologia Concisa, São Paulo: Cultura Cristã, 1999, p. 238).

[11]John MacArthur, O Caminho da Felicidade, São Paulo: Cultura Cristã, 2001, p. 157.

[12]D.M. Lloyd-Jones, Santificados mediante a Verdade, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas (Certeza Espiritual, v. 3), 2006, p. 115.

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