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Teologia da Evangelização (7) - Hermisten Maia

Teologia da Evangelização (7)

1.3. A unidade do Evangelho no Antigo e no Novo Testamento

1.3.1. Sua convergência

A linguagem é um meio de identificação,[1] difusão da cultura e, ao mesmo tempo, de seu fortalecimento. A linguagem carrega consigo significados e valores, já que ela e a comunidade mantêm uma relação de interdependência.[2] A linguagem é uma das características distintivas do ser humano.[3]

Uma questão extremamente difícil é o processo de ressignificação da linguagem de uma cultura. Uso aqui a expressão em sentido bastante restrito: Como fazer as pessoas ouvirem e assimilarem determinadas palavras dentro de uma perspectiva diferente e, até mesmo conflitante, em relação aos significados aprendidos e dominantes?

As palavras carregam consigo significados próprios de uma cultura. A transposição deste conceito nem sempre é possível porque a realidade descrita carece de termos naquela língua para expressá-la. Deste modo, trabalhamos com um conceito analógico[4] que se propõe a fazer uma ponte, nem sempre no mesmo nível, de dois pontos por vezes bastante distantes.

As Escrituras, especialmente o Novo Testamento, esbarram nesta questão repetidas vezes: apresentar a mensagem cristã com termos já conhecidos, mas, ao mesmo tempo, que ganharam um novo significado a partir da própria essencialidade do Evangelho. Assim, os escritores sagrados, inspirados por Deus, valeram-se, por vezes, de palavras amplamente conceituadas e assimiladas, porém, conferindo-lhes um sentido distinto, que, muitas vezes, só poderia ser compreendido a partir do Antigo Testamento.

Com frequência é frustrante estudar as palavras do Novo Testamento sem a perspectiva teológica de seu conteúdo já estabelecido no Antigo Testamento.[5] O Novo Testamento foi escrito em grego, contudo a sua teologia encontra o seu fundamento na revelação veterotestamentária.

O apóstolo João foi quem mais se deparou com essas questões do conhecimento, justamente por escrever no final do primeiro século, quando o Cristianismo havia se expandido e, ao mesmo tempo, novas heresias surgiam com um conteúdo sincrético. Concomitante a isso, as perseguições intensificavam-se.

            Quando os pregadores cristãos empregaram, por exemplo, palavras tais como “igreja”, “logos”, “justiça”, “conhecimento”, “regeneração”, “sabedoria”, entre outras, era natural que os seus ouvintes, prematuramente, associassem esses termos aos conteúdos já conhecidos. Uma barreira a ser transposta era mostrar que o Cristianismo tinha uma mensagem diferente e, por isso mesmo, relevante para os seus ouvintes.

            Por isso, as raízes do uso da palavra “Evangelho” no Novo Testamento, devem ser buscadas não no grego secular, mas sim no Antigo Testamento.[6] Ou seja, mesmo a palavra tendo um emprego comum no grego clássico, o seu conteúdo encontra-se nas páginas do Antigo Testamento. O recipiente é grego, contudo, o conteúdo é judaico. Muitas vezes a língua grega é apenas a taça de prata, mas, o conteúdo de ouro está na teologia veterotestamentária.

            Biblicamente, o Evangelho é a boa mensagem de Deus, declarando que em Jesus Cristo temos o cumprimento de suas promessas a Israel, e que o caminho da salvação foi aberto a todos os povos. Deste modo, o Evangelho não deve ser colocado em contraposição ao Antigo Testamento, como se o Deus do Antigo Testamento fosse outro Deus [7] ou que Deus mesmo tivesse alterado sua maneira de tratar com o homem, mas antes, é o cumprimento da sua promessa (Mt 11.2-5)[8].[9]

            O ponto central para compreensão da unidade do Evangelho é demonstrado na atitude de Jesus Cristo que, na Sinagoga, ao ler a profecia de Isaías, identificou-se como o que fora prometido: Ele é o Messias. Registra Lucas:

Indo para Nazaré, onde fora criado, entrou, num sábado, na sinagoga, segundo o seu costume, e levantou-se para ler. Então, lhe deram o livro do profeta Isaías, e, abrindo o livro, achou o lugar onde estava escrito: O Espírito do Senhor está sobre mim, pelo que me ungiu para evangelizar (Eu)aggeli/zw) os pobres; enviou-me para proclamar libertação aos cativos e restauração da vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos, e apregoar o ano aceitável do Senhor. Tendo fechado o livro, devolveu-o ao assistente e sentou-se; e todos na sinagoga tinham os olhos fitos nele. Então, passou Jesus a dizer-lhes: Hoje, se cumpriu a Escritura que acabais de ouvir (Lc 4.16-21).

            “Jesus Cristo é o cumprimento de todas as profecias e promessas do Velho Testamento”, resume Lloyd-Jones (1899-1981).[10] Ele é o sujeito do Evangelho, o seu conteúdo e, ao mesmo tempo, o seu proclamador. Aprendemos a anunciar o Evangelho com o Senhor Jesus e, encontramos o significado de sua mensagem em sua encarnação, vida e obra.

            Jesus Cristo é o tema central das Escrituras. “Jesus Cristo em si é a mensagem eterna da Bíblia”, escreveu Graham (1918-2018).[11] A Bíblia em toda a sua extensão é essencialmente Cristocêntrica.[12] De Gênesis a Apocalipse, a Pessoa e a Obra de Cristo estão presentes. O Antigo e o Novo Testamento estão vinculados a Cristo. No livro de Gênesis encontramos o prenúncio da sua primeira vinda. Em Gn 3.15, temos o protoevangelium – o primeiro vislumbre histórico da redenção que seria efetuada por Cristo. “Estas foram as primeiras palavras da graça a um mundo perdido”, pontua Law (1797-1884).[13]

            A pessoa de Cristo perpassa todo o Antigo Testamento encontrando a sua concretização histórica no Novo Testamento.[14]

            De passagem, devemos dizer que o fato mais importante concernente à adoração no Novo Testamento é a centralidade de Jesus Cristo,[15]aquele que é o cumprimento das promessas e profecias do Antigo Testamento, sendo o Senhor e Mediador único e definitivo da Aliança selada entre Deus e o seu povo. A visão desta Aliança é a chave que abre as portas para a compreensão de toda teologia bíblica. A Pessoa de Cristo é o elo que une os dois Testamentos.[16] Em suma, Jesus Cristo é o fundamento da verdadeira adoração a Deus.

Maringá, 10 de julho de 2022.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]“Se realmente queremos entender uma cultura, muitas vezes diz-se necessário que compreendamos a sua língua” (Tim Chester, Conhecendo o Deus Trino: porque Pai, Filho e Espírito Santo são boas novas, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2016, p. 18).

[2] “Uma língua é inconcebível sem uma comunidade linguística que a suporte, assim como essa comunidade só existe em virtude de uma língua determinada, que lhe dá ao mesmo tempo sua forma e seu contorno. Desde que uma língua existe, existe também uma comunidade linguística. Há, em suma, entre as duas, uma dependência recíproca” (Walther Von Wartburg; Stephen Ullmann, Problemas e Métodos da LInguística, São Paulo: Difel, 1975, p. 205). À frente: “Tudo o que podemos dizer é que o nascimento da língua ou de uma determinada língua, ou o nascimento da comunidade que a suporta, o desenvolvimento do espírito, e a origem do gênero humano, representam fenômenos geneticamente conexos” (Ibidem., p. 206-207).

[3] “A linguagem é uma das características que separam o homem dos animais. Assim como a racionalidade, a linguagem pertence às pessoas”  (Vern S. Poythress,  Redimindo a Matemática: uma abordagem teocêntrica, Brasília, DF.: Monergismo, 2020, p. 22). “A linguagem distingue de modo nítido o homem dos animais, põe em evidência a sua superioridade intelectual, dá-lhe a possibilidade de viver um tipo muito mais perfeito de sociabilidade, põe-no em condições de desenvolver técnicas para o domínio e a função da natureza que no mundo animal  são de fato desconhecidas. (…) A linguagem revela a natureza complexa do ser do homem; ela revela claramente como nenhum outro fenômeno a interação e a interdependência do físico e do conceptual na existência humana” (Battista Mondin, O Homem, quem é ele?,São Paulo: Paulinas, 1980, p. 151).

[4] Devo esta expressão às observações de Collingwood (R.G. Collingwood, Los Principios Del Arte, México: Fondo de Cultura Econômica, © 1960, 3. reimpressão, 1993, p. 18-20).

[5] Veja-se: François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 39-40.

[6]Vejam-se: Gerhard Friedrich, Eu)agge/lion: In: Gerhard Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, v. 2, p. 725; P. Bläser, Evangelho: In: Heinrich Fries, dir., Dicionário de Teologia, 2. ed. São Paulo: Loyola, 1983, v. 2, p. 153; Donatien Mollat, Evangelho: In: Xavier Léon-Dufour, dir. Vocabulário de Teologia Bíblica, 3. ed. Petrópolis, RJ.: Vozes, 1984, p. 319; U. Becker, Evangelho: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, v. 2, p. 169.

[7] Conforme sustentava Márcion (… c. 165). A respeito de seus ensinamentos, vejam-se, entre outros: Tertulian, The Five Books Against Marcion. In: Alexander Roberts; James Donaldson, eds. Ante-Nicene Fathers, 2. ed.Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 1995, v. 3, p. 269-475; Irineu, Irineu de Lião, São Paulo: Paulus, 1995, I.27.2-4. p. 109-110; Justino de Roma, I Apologia, São Paulo: Paulus, 1995, 58, p. 73-74.

[8]“Quando João ouviu, no cárcere, falar das obras de Cristo, mandou por seus discípulos perguntar-lhe: És tu aquele que estava para vir ou havemos de esperar outro? E Jesus, respondendo, disse-lhes: Ide e anunciai a João o que estais ouvindo e vendo: os cegos veem, os coxos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados, e aos pobres está sendo pregado o evangelho (eu)aggeli/zw) (Mt 11.2-5).

[9]Cf. R.H. Mounce, Evangelho: In: J.D. Douglas, ed. org. O Novo Dicionário da Bíblia, São Paulo: Junta Editorial Cristã, 1966, v. 1, p. 566.

[10] D.M. Lloyd-Jones, Deus o Pai, Deus o Filho,São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1997 (Grandes Doutrinas Bíblicas, v. 1), p. 317.

[11] Billy Graham, Em Paz com Deus,Rio de Janeiro: Record, © 1984, p. 29.

[12] Veja-se: John Stott, Tu, Porém, A Mensagem de 2 Timóteo, São Paulo: ABU. (Coleção A Bíblia Fala Hoje), 1982, p. 98.

[13]Henry Law, O Evangelho em Gênesis,São Paulo: Editora Leitor Cristão, 1969, p. 33.

[14] “Não examinamos o Antigo Testamento apenas para encontrar os antecedentes históricos de Cristo e de seu ministério, nem mesmo para buscar referências que façam previsões sobre ele. Temos de encontrar Cristo no Antigo Testamento – não aqui e ali, mas em toda parte” (R. Albert Mohler Jr., Estudando as Escrituras para encontrar Jesus: In: D.A. Carson, org.,  As Escrituras dão testemunho de mim, São Paulo: Vida Nova, 2015, p. 18). “O tema central de toda a Bíblia é Jesus Cristo, o Redentor de todos os que o invocam” (Steven J.  Lawson, O tipo de pregação que Deus abençoa,  São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2013, p. 27).

[15] Cf. John M. Frame, Worship in Spirit and Truth, Phillipsburg, NJ.: P & R. Publishing, 1996, p. 25ss.

[16]Ver: Confissão de Westminster, VII.6.

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