O Ser, as pessoas e as coisas: ontologia, epistemologia e ética (2)
1. O Ser de Deus e o existir da criação
“Quão grandes (ld;G”) (gadal), SENHOR, são as tuas obras! Os teus pensamentos (hb’v’x]m;) (machashabah) (desígnios,[1] intentos) que profundos!” (Sl 92.5).[2]
Os seus desígnios, por serem verdadeiros e provenientes do Deus santo, justo e soberano, são inumeráveis e eternos: “O conselho do SENHOR dura para sempre; os desígnios (hb’v’x]m;) (machashabah) do seu coração, por todas as gerações” (Sl 33.11).
Aqui já nos deparamos com algo grandioso demais para nós. Pensamos sempre em termos de causa e efeito e, dentro das categorias tempo e espaço repletos de circunstâncias temporais, geográficas, culturais e pessoais.
Antes de prosseguir, assentemos um ponto: Qualquer concepção fora dessas dimensões (causa-efeito e tempo-espaço) seria impossível ao homem por si só, amenos que o Deus transcendente e pessoal se revele, apresentando uma dimensão do além e depois nos capacitando a percebê-la por graça. Desse modo, sem essa compreensão não seria possível falar de qualquer aspecto metafísico ou imaterial.
Portanto, foi dentro dessas categorias tão importantes para nós, que Deus se revelou. Ele criou o tempo, a matéria e o espaço dentro de uma coligação temporal e multidependente. No entanto, todos preservados pelo seu poder.
Os propósitos de Deus são eternos (Ef 3.11). O seu decreto é eterno. Deus não está circunscrito ao tempo, à aprendizagem e à “maturação das ideias”. Deus é o senhor da eternidade, do tempo e das circunstâncias. O tempo é onde Deus revela o seu propósito eterno.[3] Na revelação de Deus, temos aos nossos olhos, o encontro do tempo com o eterno, sem que o Deus eterno, jamais deixe o tempo, onde Ele age e cuida de nós
A fim de se comunicar conosco, Deus age e fala dentro do tempo e do espaço. Ele se dá a conhecer também nos eventos da história onde desenvolve o seu propósito glorioso. As Escrituras se constituem em grande parte em uma narrativa inspirada dos efeitos decorrentes da obediência e desobediência do povo Deus. A história vivencia a doutrina, a ilustrando em suas narrativas.
Salmo 1
Por exemplo, no Salmo 1, que prefacia o livro de Salmos,[4] vemos narrados os efeitos da obediência à Lei e as consequências de seguir um caminho totalmente autônomo, indiferente a Deus e aos seus preceitos.
O salmista inicia o Salmo falando sobre o homem bem-aventurado, estabelecendo uma distinção entre os “piedosos” e “pecadores”. “O primeiro salmo encontra-se no pórtico da coleção dos salmos como um guia que em linhas claras indica a direção da vida”, orienta Weiser (1893-1978).[5]
Temos aqui, portanto, uma reflexão sobre as escolhas humanas e as suas consequências. Ou, positivamente: “O Livro dos Salmos é um manual de instruções para viver uma vida verdadeiramente feliz”, escreve Futato.[6]
Os homens buscam a felicidade por meio de seus expedientes terrenos ou mesmos transcendentes, contudo, sempre partindo daqui de baixo. Deus propõe em sua Palavra o caminho da felicidade. A sua origem está em cima, o caminho começa pelo eterno passando pelo tempo. Deus sabe o que desejamos, sabe o melhor para nós e, ao mesmo tempo, apresenta-nos o caminho para alcançar o que Ele tem para nós.
A felicidade é-nos proposta por Deus não de forma automática, mas, pelo caminho da obediência aos seus preceitos.[7] O divisor de águas sempre terá uma linha. As consequências podem não ser vistas ali, contudo, elas aparecerão.[8]
O salmista no salmo 33.11 nos diz que os desígnios de Deus permanecem para sempre. Ou seja: muito do que podemos ver nessa vida não esgota nem mesmo aspectos do seu governo e propósito. Por isso, muitas vezes nos angustiamos com o que consideramos passividade, indiferença, demora de Deus ou, por presumir um fim de julgamos ser o melhor.
A soberania de Deus na utilização dos meios
Deus é soberano na utilização dos meios por Ele mesmo estabelecidos. De forma sábia, santa e soberana, o Senhor usa os instrumentos que quer e segue o caminho que lhe apraz. No livro de Habacuque, vemos que Ele usou os caldeus para disciplinar a Judá (Hc 1.12/Is 10.5-6). Deus é senhor dos meios e dos fins!
Os caldeus, por certo, atribuíam as suas vitórias aos seus poderosos feitos (Hc 1.11,15,16). Eles não entendiam que por meio de sua própria, livre e espontânea maldade, havia a direção de Deus para o fim proposto. Os seus caminhos são com frequência incompreensíveis à nossa razão. A nossa razão, por sua vez, em nome de uma racionalidade autônoma, especula meios possíveis para explicar a ação de Deus:
Pois eis que suscito os caldeus, nação amarga e impetuosa, que marcham pela largura da terra, para apoderar-se de moradas que não são suas. (Hc 1.6).
Não és tu desde a eternidade, ó SENHOR, meu Deus, ó meu Santo? Não morreremos. Ó SENHOR, para executar juízo, puseste aquele povo; tu, ó Rocha, o fundaste para servir de disciplina. (Hc 1.12).
Os caminhos de Deus são eternos. (Hc 3.6).
Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos, os meus caminhos, diz o SENHOR. (Is 55.8).
Deus é. Somente em Deus temos uma identidade inseparável entre essência e existência.[9] Em Deus tudo é essência. A sua essência é infinita e inacessível (Sl 145.3/Jó 11.7-9). Ele eternamente é o que é por si mesmo. Nunca houve ou haverá em Deus uma dicotomia entre o ser e o existir.
Portanto, nele nada é acidente. Ele como “causa não causada”, ou ser sem precedente, nada o antecede ou acrescenta elementos a si mesmo. No entanto, tudo dele procede. Ele é o que é. Ou: Será o que será porque é o que será bem como é o que foi (Ex 3.14; Jó 36.22-23; 41.11; Is 40.13-14; Rm 11.33-36; 1Co 2.16).
A chamada realidade, as pessoas e as coisas não conferem sentido a Deus. Antes, é quem confere sentido à toda existência. Tudo converge para Ele. “Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente. Amém!” (Rm 11.36).
A eternidade, a história e as circunstâncias nada acrescentam a Deus que, como ser absolutamente simples e necessário, é completo[10] e, por isso mesmo, perfeito. A partir da compreensão dessa condição absoluta, necessária e eterna, é que toda a ontologia, epistemologia e ética tornam-se possíveis sem cairmos em relativismos ou subjetivismos absolutos.
As pessoas e as coisas existem. Como criação do Deus absoluto, toda a natureza, luta contra a sua extinção. O seu existir, tem em si o senso, ainda que longínquo do absoluto que permanece. É um senso de autopreservação que lhe é inerente.[11]
O “existir de Deus” é uma categoria divina comunicativa acomodatícia à fragilidade e limitação de nossa compreensão, já que pensamos sempre com categorias delimitadas pela transitoriedade do existir. Falar do existir de Deus é por si só uma categorização humana e, por isso mesmo, com a permissão de Deus, restritiva.[12]
Conhecemos a Deus porque Ele se revela. O nosso conhecimento é limitado, porém, pode ser real e verdadeiro.[13] A criação do nada pressupõe a existência de um Deus soberanamente livre e poderoso que se basta eternamente a si mesmo.[14] Deus não se confunde conosco nem com a matéria. Ele antecede a tudo (Gn 1.1),27). Ele existe por si mesmo, não dependente de nada fora dele (Ex 3.14/Ap 1.4). Ele é a causa eficiente de tudo o que existe (Is 44.24/Jo 1.1-3).[15] Deus antecede à criação. Permanece para sempre e não muda.
O poder de Deus é soberanamente livre. Deus é soberano em si mesmo. A onipotência faz parte da sua essência. Por isso mesmo, para Ele não há impossíveis. Apesar de qualquer oposição, Ele executa o seu plano.[16]
Maringá, 17 de junho de 2022.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] Sl 40.5.
[2]Curiosamente, um filósofo pagão, Xenófanes (c. 580-c.460 a.C.), criticando a religiosidade de sua época, propõe uma visão próxima ao monoteísmo ou pelo menos, um “politeísmo não antropomórfico” (W.K.C. Guthrie, Os Sofistas,São Paulo: Paulus, 1995, p. 211), mas, ainda assim, cosmológico, identificando, conforme pontua Aristóteles, o uno, ou seja, o universo (Ver: Giovanni Reale; Dario Antiseri, História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média, São Paulo: Paulus, 1990, v. 1, p. 49.), como sendo Deus (Aristóteles, Metafísica,São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 4), 1973, I.5, p. 223). Escreve tendo uma visão grandiosa de deus: “Um único deus, o maior entre deuses e homens, nem na figura, nem no pensamento semelhante aos mortais” (Xenófanes, Frag.,23: In: Gerd A. Bornheim, org., Os Filósofos Pré-Socráticos, 3. ed. São Paulo: Cultrix, 1977. (Tradução um pouco diferente: In: José Cavalcante de Souza, org., Os Pré-Socráticos, São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores, v. 1), 1973, p. 71).
[3]Meu antigo e saudoso professor de História da Igreja, escreveu: “[A História da igreja é] a narração dos fatos relativos à origem, ao desenvolvimento e propósito do Reino de Deus na Terra” (Lázaro Lopes de Arruda, Anotações de História da Igreja, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1990, Tomo I, p. 15).
[4] Conforme expressão de Spurgeon (C.H. Spurgeon, El Tesoro de David, Barcelona: CLIE., (1989), v. 1, p. 13. Do mesmo modo: Walter Brueggemann, The Psalms the life of Faith, Minneapolis: Fortress Press, 1995, p. 190; A.F. Kirkpatrick, The Book of Psalms, Cambridge: University Press, © 1902, 1951 (Reprinted), p. 1.
[5]Artur Weiser, Os Salmos, São Paulo: Paulus, 1994, p. 69. “O salmo usa a forma poética do paralelismo para criar um apogeu. A primeira coisa que é dita sobre essa pessoa abençoada é que ela não anda no conselho dos ímpios. Ela é surda aos conselhos dos pagãos, que nos induzem a participar dos caprichos deste mundo” (R.C. Sproul, Oh! Como amo a tua lei. In: Don Kistler, org. Crer e Observar: o cristão e a obediência, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 12). Veja-se: Mark D. Futato, Interpretação dos Salmos, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, p. 47-48.
[6] Mark D. Futato, Interpretação dos Salmos, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, p. 54.
[7] Veja-se: Peter C. Craigie, Psalms 1-50, 2. ed. Waco: Thomas Nelson, Inc. (Word Biblical Commentary, v. 19), 2004, (Sl 1), p. 60.
[8] Veja-se a oportuna figura empregada por Schaeffer concernente aos Alpes Suíços (Francis A. Schaeffer, O grande desastre evangélico: In: Francis A. Schaeffer, A Igreja no Século 21, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 269ss.).
[9] “Logo, é impossível que, em Deus, a existência seja diferente da essência. (…) A existência está para a essência, da qual difere, como o ato para a potência. Ora, Deus nada tendo de potencial, como demonstramos, resulta que a sua essência não difere da sua existência e, portanto, são idênticas. (…) Deus é a sua essência. (…) Deus é a sua existência e não somente, a sua essência” (Tomás de Aquino, Suma Teológica, 2. ed. Caxias do Sul, RS.; Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes; Universidade de Caxias do Sul; Livraria Sulina Editora; GRAFOSUL, 1980, v. 1, Primeira Parte, Questão 2, Artigo 4, Solução, p. 26-27).
[10] “A essência de Deus é perfeitamente simples e livre de toda e qualquer composição. (…) Toda composição infere em mutação, por meio da qual uma coisa se torna parte de um todo, o que ela não era antes” (François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 262,263).
[11] Veja-se: Herman, Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, 156.
[12] Como bem escreve Clark (1902-1985): “É, portanto, relativamente sem importância se uma pessoa crê ou não na existência de Deus. Existência é um pseudoconceito. A questão importante é ‘Quem é Deus?’. A esta pergunta o Cristianismo oferece uma resposta trinitariana” (Gordon H. Clark, Ateísmo: In: Carl Henry, org. Dicionário de Ética Cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 63. Do mesmo modo, veja-se: Gordon H. Clark, Dios: In: E.F. Harrison, ed., Diccionario de Teologia, Michigan: T.E.L.L., 1985, [p. 157-167], p. 164.
[13] “É claro que todo o nosso conhecimento de Deus é ectípico ou derivado da Escritura. Somente o autoconhecimento de Deus é adequado, não-derivado ou arquetípico. Apesar disso, nosso conhecimento finito, inadequado, ainda é verdadeiro, puro e suficiente” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a criação, São Paulo, Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 97). Vejam-se: Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a criação, São Paulo, Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 98,99,110; Emil Brunner, Dogmática, São Paulo: Novo Século, 2004, v. 1, p. 156-157; Francis A. Schaeffer, O Deus que Intervém, São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 151; John M. Frame, A Doutrina de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2013, p. 164ss.
[14] “A substância suprema (…) tudo o que ela é, é por si mesma e de si mesma” (St. Anselmo de Cantuária, Monológio, São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores, v. 7), 1973, I.6, p. 21).
[15] “Deus é aquele que existe de si mesmo e por meio de si mesmo, o ser perfeito que é absoluto em sabedoria e bondade, justiça e santidade, poder e bem-aventurança” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 98).
[16] Ver: Herman Bavinck, Teologia Sistemática,Santa Bárbara d’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 479-512.