A Pessoa e Obra do Espírito Santo (350)
6.4.8.3.4. Unidade não existe em detrimento da verdade (Continuação)
O escritor alemão, G.E. Lessing (1729-1781), filho e neto de pastores luteranos, recebeu a educação clássica em Meissen, pequena cidade da Alemanha. Ainda jovem se empolgou com as comédias de Plauto e Terêncio, despertando o seu interesse pelo Teatro. Estudou em 1746 Teologia na Universidade de Leipzig, no entanto, frequentava aulas de Filologia Clássica e Arte. Estudou também em Berlim, onde conheceu Voltaire (1694-1778).
Lessing absorveu de forma decisiva o racionalismo otimista do Iluminismo alemão sintetizando-o com o deísmo inglês. Desta forma, tinha a razão como elemento definidor de qualquer autoridade externa, inclusive de Jesus Cristo ou da Escritura. A razão é autônoma.[1]
Com sua “mente universal”[2] e polêmica, tornou-se dramaturgo, crítico artístico e literário, ocupando um lugar entre os escritores clássicos como Goethe (1749-1832) e Schiller (1759-1805), sendo considerado “o maior poeta do iluminismo alemão”, conforme expressão de Mittner (1902-1975)[3] e, nas palavras de Abbagnano (1901-1990), “A mais genial figura do iluminismo alemão”.[4]
No campo da dramaturgia, desempenhou um papel principal na fundação do drama alemão, conforme escreveu Brown (1932-2019): “Ajudou a libertar o drama da imitação servil da tragédia francesa clássica, e introduziu a praxe novel de escrever peças de teatro acerca de pessoas da classe média ao invés dos reis e da nobreza”.[5] Por meio de sua obra literária Lessing destilou a sua teologia.
Lessing foi influenciado até certo ponto pelo racionalismo de Voltaire (1694-1778), entretanto, criticava a forte presença do teatro francês na Alemanha, sendo um crítico de Voltaire. Este, como era de seu costume (Rousseau que o diga), perseguiu Lessing, dificultando ainda mais a sua vida cheia de embaraços financeiros.
O modelo preferido de Lessing foi o de Shakespeare (1564-1616), a quem traduziu para popularizou na Alemanha.[6]
No período de 1770-1778, trabalhou como bibliotecário, do príncipe herdeiro Fernando, duque de Brunswick, em Wolfenbüttel, dedicando-se ao estudo da história do Cristianismo. Nesse período publicou os polêmicos Fragmentos de Wolfenbüttel(1774-1778).[7]
A conclusão a que chega desses estudos, é que nenhuma religião, por si só, pode reivindicar a verdade total na presença de outras. Nesse particular, parábola dos três anéis contada por Lessing em sua obra-prima, Natã, o Sábio(1779), – peça que retrata o período da Terceira Cruzada (1189-1192) ambientada em Jerusalém -, é reveladora.[8] A parábola pode ser resumida assim:
Havia, certa vez, um anel antigo que tinha o poder de transmitir ao seu dono a dádiva de ser amado por Deus e pelos homens. O anel foi passado de geração em geração por muito tempo, até vir a pertencer a um pai que tinha três filhos igualmente queridos a ele. Para resolver este dilema, mandou fazer duas réplicas, e deu um anel para cada filho. Depois da sua morte, todos os três alegavam ser possuidores do anel verdadeiro. Mas, como no caso da religião, o original não pode ser descoberto. A investigação histórica de nada adianta. Um juiz sábio, no entanto, aconselha cada filho a comportar-se como se tivesse o anel verdadeiro, e a comprová-lo mediante atos de amor. Destarte não importará, afinal das contas, quem tinha o original. Os três filhos representam o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo. Um dia, transcenderão a si mesmos e se unirão numa única religião universal de amor.[9]
Portanto, em questões de religião, a tolerância é a virtude suprema, e o dogmatismo é a atitude mais repreensível. A implicação dessas concepções nos conduz ao Ecumenismo entre todas as religiões, procurando o que há de bom em cada uma.[10]
Nesse sentido, o Cristianismo passa a ser apenas mais uma religião num universo de inumeráveis religiões que existem e estão sendo descobertas.[11] Este tipo de aproximação metodológica acarretava o fim de uma teologia vigorosa e forte, caracterizando-se por um desvio do estudo bíblico e teológico para uma abordagem apenas histórica. Esse seguimento decreta, de forma explícita ou não, o fim da voz profética de uma Igreja, tendo como critério avaliativo apenas o que promove a “unidade” ainda que em detrimento da verdade.
Hordern (1920-2014), avalia:
Vários fatos perturbadores à ortodoxia surgiram dos estudos relacionados com a nova ciência. Algumas crenças paralelas com crenças cristãs, como, por exemplo, o nascimento virginal, assinalaram-se como constando de outras religiões. Todas as religiões contavam com muitas narrativas miraculosas e, a admitir que o cristianismo podia lançar mão de milagres para demostrar-se verdadeiro, coisa que até mesmo os socianos faziam, como proceder-se em face dos milagres alegados por outras firmas de fé? Todas as religiões apresentam-se detentoras de Escrituras Sagradas, as quais são tidas como reveladas pelas respectivas divindades. Por que se deve asseverar a superioridade das Escrituras Cristãs? Além disso, pessoas interessadas primariamente nas consequências éticas da religião tomaram conhecimento de que outras religiões também contavam com elevados padrões éticos. Em suma, a natureza exclusiva do cristianismo passou a ser objeto de discussão e polêmica.[12]
Maringá, 15 de novembro de 2021
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] Veja-se; Alister E. McGrath, Paixão pela Verdade: a coerência intelectual do Evangelicalismo, São Paulo: Shedd Publicações, 2007, p. 25-26.
[2]Paul Tillich, Perspectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e XX, São Paulo: ASTE, 1986, p. 85.
[3] Cf. Giovanni Reale; Dario Antiseri, História da Filosofia: Do Humanismo a Kant, 2. ed. São Paulo: Paulus, 1990, v. 2,p. 834.
[4] Nicola Abbagnano, História da Filosofia, História da Filosofia, 3. ed. Lisboa: Editorial Presença, 1984, v. 8, § 509, p. 35.
[5] Colin Brown, Filosofia e Fé Cristã, São Paulo: Vida Nova, 1983, p. 59.
[6]Veja-se:https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8133/tde-11012008-112759/publico/TESE_ NATALIA_GIOSA_FUGITA.pdf
[7] A sua obra recebeu este nome por ter sido “encontrada” na biblioteca de Wolfenbüttel. Este trabalho, escrito por Hermann S. Reimarus (1694-1768), foi produzido originalmente somente para o uso particular. A sua publicação causou forte conturbação teológica. (Cf. Paul Tillich, Perspectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e XX, São Paulo: ASTE, 1986, p. 85). Quando sua família tomou conhecimento da obra e do seu autor, desaprovou a publicação.
Colin Brown comenta este achado: “Lessing fez uso do expediente de fingir que acidentalmente achou os fragmentos num manuscrito antigo no decurso dos seus deveres como bibliotecário do Duque de Brunsvique em Wolfenbüttel. A verdadeira identidade do autor foi revelada somente muito tempo depois da morte de Lessing” (Colin Brown, Filosofia e Fé Cristã, São Paulo: Vida Nova, 1983,p. 59). Reale e Antiseri dizem que o manuscrito lhe foi dado pela filha de Reimarus. (Giovanni Reale; Dario Antiseri, História da Filosofia: Do Humanismo a Kant, São Paulo: Paulinas, 1990, v. 2, p. 835).
Segundo A. Schweitzer (1875-1965), o trabalho de Reimarus publicado por Lessing, colocou em andamento a busca do Jesus Histórico. O próprio Schweitzer publicaria em 1906 a sua tese de doutorado intitulada: A Busca do Jesus Histórico, na qual criticava as “biografias” anteriores de Jesus, dizendo que não passavam de representações imaginárias, não um relato de Jesus, o carpinteiro da Galiléia. No entanto, o trabalho de Schweitzer apresenta um Jesus influenciado pela apocalíptica judaica, crédulo de sua missão messiânica e da necessidade de sofrer e de morrer para realizar a sua obra, provocando assim a manifestação do reino; contudo, visto que as suas expectativas quanto à vinda iminente do reino não se dera, morreu desesperado na cruz.. Entretanto, como a comunidade dos apóstolos ainda confiava nele, redigiu os relatos evangélicos para confirmar a sua fé. Obviamente a teologia de Schweitzer não poderia se amparar nas Escrituras e em credos, daí o forte e quase solitário teor ético apresentado em seus ensinamentos e na sua prática de vida, sendo esta, extremamente modelar.
[8] Gotthold E. Lessing, Nathan, o Sábio, Rio de Janeiro, RJ.: Topbooks, 2015, III.7, p. 345ss.
[9]Colin Brown, Filosofia e Fé Cristã, São Paulo: Vida Nova, 1983, p. 60. Este resumo encontra-se também reproduzido in: Colin Chapman, O Cristianismo no Banco dos Réus, São Paulo: Vida Nova, 1978, p. 67. Sobre a temática, vejam-se as obras de dois autores que escreveram antes de Lessing. Refiro-me ao texto de Locke (1689) (Carta sobre a Tolerância, Lisboa: Edições 70, (1987) e ao de Voltaire (1763) (Tratado sobre a tolerância, São Paulo: Escala, (s.d.). Se desejarem recuar mais no tempo, não se esqueçam da Cidade de Sol de Campanella e A Utopia de Thomas Morus.
[10]A nossa palavra “Ecumenismo”, provém do substantivo grego Oi)koume/nh, estando gh= (terra, solo, chão), subentendido. Oi)koume/nh, é derivado de Oi)=koj (casa, nação). O conceito desta palavra era primariamente geográfico – terra habitada (Veja-se: Heródoto, História, Rio de Janeiro: Editora Tecnoprint, (s.d.), IV. 110, p. 373) –, tornando-se depois, também cultural e político (Veja-se: Otto Michel, h( oi(koume/nh: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1981, (Reprinted), v. 5, p. 157), indicando o mundo cultural versado e refinado, comandado pelos gregos em contraposição ao “barbarismo” (Cf. John H. Gerstner, Ecumenismo: In: E.F. Harrison, ed. Diccionario de Teologia, Grand Rapids, Michigan: TELL, 1985, p. 183b).
Oi)koume/nh tem o sentido de “mundo civilizado”, “todos os habitantes do globo”. (Cf. A Lexicon Abridged from Liddell and Scott’s Greek-English Lexicon, Oxford: Clarendon Press, 1935, p. 477b). A palavra veio a significar: a) A partir de Demóstenes (384-322 a.C.), mundo habitado pelos gregos em contraste com as terras habitadas pelos bárbaros; b) A partir de Aristóteles (384-322 a.C.), mundo habitado, quer por gregos, quer por “bárbaros”, contrastando com as terras não habitadas; c) Adquiriu no Império Romano um sentido político, indicando as terras sob o domínio Romano. Não é à toa que Nero tinha o título de Swth/r e Eu)erge/thj da Oi)koume/nh, ou seja, “Salvador e benfeitor da terra” (Cf. O. Flender, Terra: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1983, v. 4, p. 601-602.
Na Septuaginta, a palavra ocorre 46 vezes, especialmente no Livro de Salmos, tendo de modo geral o sentido de terra habitada, sendo muitas vezes traduzida por “mundo”. Como exemplo, citamos: 2Sm 22.16; Sl 18.15; 19.4; 24.1; 33.8; 50.12; Jr 10.12 (mundo); Is 10.14,23; 13.5,9 (terra); Ex 16.35 (ARA; BJ: “terra habitada”); Pv 8.31 (ARA: “mundo habitável”; BJ; “superfície da terra”).
O NT. emprega a palavra 15 vezes (* Mt 24.14; Lc 2.1; 4.5; 21.26; At 11.18; 17.6,31; 19.27; 24.5; Rm 10.18; Hb 1.6; 2.5; Ap 3.10; 12.9; 16.14) – especialmente nos escritos de Lucas (8 vezes) –, primordialmente no sentido geográfico, ainda que Lc 2.1, entre outros textos, indique o sentido político, revelando o poder romano. Assim podemos classificar a sua ocorrência do seguinte modo: a) A terra habitada, o mundo: Mt 24.14; Lc 4.5; 21.26; At 11.28; Rm 10.18; Hb 1.6; Ap 16.14; b) Mundo, no sentido de humanidade: At 17.31; 19.27; Ap 3.10; 12.9; c) O Império Romano: At 24.5; d) Seus habitantes: Lc 2.1; At 17.6; e) O mundo por vir: Hb 2.5.
Irineu (c.120-202), discípulo de Policarpo (c. 70-155) – que conheceu João pessoalmente –, bispo de Esmirna, no segundo século aponta para o ecumenismo da Igreja, no sentido de que ela, mesmo estando espalhada pelo mundo (Oi)koume/nh), professa uma só doutrina. (Veja-se: Irineu, Irineu de Lião, São Paulo: Paulus, 1995, I.10.1-2).
Ao que parece, foi somente após a Conferência de Edimburgo (1910) (Cf. Georgia Harkness, Ecumenical Movement: In: Harry S. Ashmore, Editor in Chief. Encyclopaedia Britannica, Chicago: Encyclopaedia Britannica, INC. 1962, v. 7, p. 945), mais precisamente entre 1920-1930 que as expressões ecumênico/ecumenismo passaram a ser usadas correntemente para referirem-se ao movimento em prol da unidade dos cristãos. (Cf. Jos E. Vercruysse, Ecumenismo: In: René Latourelle; Rino Fisichella, dirs. Dicionário de Teologia Fundamental, Petrópolis; Aparecida, RJ.: Vozes; Santuário, 1994, p. 248). No entanto, algumas vezes estes termos são empregados de forma mais ampla, para indicar todo esforço que vise unir todas as religiões. Quando isto acontece, parece-nos que o termo perde o seu sentido eclesiástico, passando a indicar um sincretismo e não mais ecumenismo conforme foi usado pela Igreja ao longo dos séculos.
[11] “O estudo das religiões comparadas tem tendido a rebaixar o cristianismo à posição de uma religião entre muitas e tem encorajado o crescimento de sincretismo” (John Stott, Eu Creio na Pregação, São Paulo: Editora Vida, 2003, p. 90).
[12]W. E. Hordern, A Teologia Protestante ao Alcance de Todos, Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1974, p. 52.