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A Pessoa e Obra do Espírito Santo (164) - Hermisten Maia

A Pessoa e Obra do Espírito Santo (164)

6.3.3. O Espírito e o nosso novo nascimento

Homem e mulher foram criados por Deus segundo o próprio modelo divino (Ef 4.24).[1] Isso não significa que o homem seja fisicamente igual a Deus. Deus não tem forma, é espírito (Jo 4.24),[2] nem significa que seja da mesma essência uma vez que ela é incomunicável.[3] Mas, na condição de criatura, ele corresponde a Deus como tal.[4]

Criados à imagem e semelhança

          A imagem e semelhança refletem, em Adão, características próprias por intermédio das quais ele poderia relacionar-se consigo mesmo, com o mundo e com Deus.

A imagem de Deus é uma precondição essencial para o seu relacionamento com Deus, e expressa, também, a sua natureza essencial: o homem é o que é por ser a imagem de Deus. Não existiria humanidade senão pelo fato de ser a imagem de Deus. Essa compreensão traz profundas implicações éticas na teologia de Calvino[5] e de Schaeffer (1922-1984).[6]

          Esta é a nossa existência autêntica e toda inclusiva.  Deste modo, escreve Spykman (1926-1993), “ser humano é ser a imagem de Deus. Portanto, imago Dei descreve nosso estado normal. Não assinala algo que está dentro de nós, ou a algo acerca de nós, senão a nossa humanidade”.[7]

          A imagem de Deus não é algo colado ou anexado a nós podendo ser tirado ou recolocado. Antes, é algo essencial ao nosso ser. Interpreta Erickson: “A imagem de Deus é intrínseca à humanidade. Não seríamos humanos sem ela. De toda a criação, somente nós somos capazes de ter um relacionamento pessoal consciente com o Criador e de reagir a Ele”.[8]

Por conseguinte, o homem não simplesmente possui a imagem de Deus, como algo externo ou acessório, antes, ele é a própria imagem de Deus.[9]

          O homem foi criado como um ser pessoal que tem consciência e determinação própria. Diferentemente de todos os outros animais, faz a distinção entre o eu, o mundo e Deus. Daí a capacidade de se relacionar com Deus (Gn 3.8-14; Jr 29.13; Mt 11.28-30) e com o seu semelhante, e pode entender (racionalmente) a vontade de Deus, fazer-se entender e avaliar todas as coisas (Gn 1.28-30; 2.18,19).[10]

Pecado e alienação: a imagem desfigurada

          O homem foi criado essencialmente como ser social.[11] O pecado alienou-nos de Deus, de nós mesmos, do nosso semelhante e da natureza.[12] Com a queda o pecar tornou-se “humano” e isso, biblicamente, é desumano. Assim, o pecado, de certa forma, desumanizou-nos.

          A Queda trouxe consequências desastrosas à imagem de Deus refletida no homem. Após a queda, mesmo o homem não regenerado continua sendo imagem e semelhança de Deus (aspecto metafísico):[13] Apesar de o pecado ter sido devastador para o homem, Deus não apagou a sua “imagem”, ainda que a tenha corrompida,[14] alienando-o, assim, de sua identidade divina original.

O pecado acarretou a perda do aspecto ético da imagem de Deus.[15] A nossa vontade, como agente de nosso intelecto,[16] agora, é oposta à vontade de Deus. O propósito divino de santidade para nós foi contraposto pelo desejo pecaminoso do homem de seguir seu próprio caminho à revelia de Deus e de seus mandamentos. A vontade humana, tornou-se totalmente avessa à vontade de Deus.[17]

          A Confissão de Westminster (1647), capítulo IV, seção 2, declara:

Depois de haver feito as outras criaturas, Deus criou o homem, macho e fêmea, com almas racionais e imortais, e dotou-os de inteligência, retidão e perfeita santidade, segundo a sua própria imagem, tendo a lei de Deus escrita em seus corações e o poder de cumpri-la, mas com a possibilidade de transgredi-la, sendo deixados à liberdade de sua própria vontade, que era mutável. Além dessa escrita em seus corações receberam o preceito de não comerem da árvore da ciência do bem e do mal; enquanto obedeceram a este preceito, foram felizes em sua comunhão com Deus e tiveram domínio sobre as criaturas.

          A imagem que agora refletimos estampa mais propriamente o caráter de Satanás.[18] O homem está eticamente sob o domínio dele.[19]

          Por intermédio de Isaías, Deus faz uma analogia extremamente forte para ilustrar a nossa situação. Ele toma dois animais difíceis de trato: o boi e o jumento. Mostra que a obtusidade, a teimosia e a dificuldade de condução destes animais dão-se pela sua própria natureza. No entanto, assim mesmo, eles sabem reconhecer os seus donos, aqueles que lhes alimentam. O homem, por sua vez, como coroa da criação,[20] cedendo ao pecado perdeu totalmente o seu discernimento espiritual. Já não reconhecemos nem mesmo o nosso Criador, antes lhe voltamos as costas e prosseguimos em outra direção:[21]

O boi conhece o seu possuidor, e o jumento, o dono da sua manjedoura; mas Israel não tem conhecimento, o meu povo não entende. Ai desta nação pecaminosa, povo carregado de iniquidade, raça de malignos, filhos corruptores; abandonaram o Senhor, blasfemaram do Santo de Israel, voltaram para trás. (Is 1.3-4).

Maringá, 20 de abril de 2021.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]“Deus é o protótipo do qual o homem e a mulher são meras cópias, réplicas (Selem, ‘estátua ou cópia lavrada ou trabalhada’) e fac-símiles (demût, ‘semelhança’)” (Walter C. Kaiser Jr. Teologia do Antigo Testamento,p. 78). Para uma interpretação diferente do conceito de imagem e semelhança, apontando na direção de o homem ser “como” Deus, seu representante apenas, nada indicando ontologicamente, ver: Eugene H. Merrill, Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Shedd Publicações, 2009, p. 175ss. Para uma crítica a esta posição, veja-se: Anthony A. Hoekema, Criados à Imagem de Deus,São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 84ss.

[2] J. Gresham Machen, El Hombre,Lima: El Estandarte de la Verdad, 1969, p. 145.

[3]Veja-se: R. L. Dabney, Lectures in Systematic Theology,Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1985, p. 293.

[4] “O homem foi criado à imagem de Deus. Ele é, portanto, semelhante a Deus em todas as coisas nas quais uma criatura pode ser como Deus” (Cornelius Van Til, Apologética Cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2010,  p. 35).

[5] Veja-se: Hermisten M.P. Costa, João Calvino 500 anos: introdução ao seu pensamento e obra, São Paulo: Cultura Cristã, 2009.

[6] “Estou convencido de que uma das grandes fraquezas na pregação evangélica nos últimos anos é que nós perdemos de vista o fato bíblico de que o homem é maravilhoso. (…) O homem está realmente perdido, mas isso não significa que ele não é nada. Nós temos que resistir ao humanismo, mas classificar o homem como um zero não é o caminho certo para resistir a ele. Você pode enfatizar que o homem está totalmente perdido e ainda ter a resposta bíblica de que o homem é realmente grande. (…) Do ponto de vista bíblico, o homem está perdido, mas é grande” (Francis A. Schaeffer, Morte na Cidade, São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 60,61). “Jamais estaremos em condições de tratar as pessoas como seres humanos, de atribuir a elas o mais alto nível de humanidade verdadeira, a menos que realmente conheçamos a sua origem – quem essas pessoas são. Deus diz ao homem quem ele é. Deus nos diz que Ele criou o homem à sua imagem. Portanto, o homem é algo maravilhoso. (…) A Bíblia diz que você é maravilhoso porque foi feito à imagem e semelhança de Deus, mas que você é imperfeito, porque em certo espaço-temporal da História, o homem caiu” (Francis A. Schaeffer, A Morte da razão, São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 34). São muito oportunas e sensíveis as analogias feitas por Olyott. (Veja-se: Stuart Olyott, Jonas – O missionário bem-sucedido que fracassou, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2012,  p. 75).

[7]Gordon J. Spykman, Teología Reformacional: Un Nuevo Paradigma para Hacer la Dogmática,Jenison, Michigan: The Evangelical Literature League, 1994, p. 248-249. Do mesmo modo: Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 542,564.

[8]Millard J. Erickson, Introdução à Teologia Sistemática,São Paulo: Vida Nova, 1997, p. 207.

[9]Veja-se: Morton H. Smith, Systematic Theology,Greenville, South Carolina: Greenville Seminary Press, 1994, v. 1, p. 238.

[10]28 E Deus os abençoou e lhes disse: Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todo animal que rasteja pela terra. 29 E disse Deus ainda: Eis que vos tenho dado todas as ervas que dão semente e se acham na superfície de toda a terra e todas as árvores em que há fruto que dê semente; isso vos será para mantimento. 30 E a todos os animais da terra, e a todas as aves dos céus, e a todos os répteis da terra, em que há fôlego de vida, toda erva verde lhes será para mantimento. E assim se fez” (Gn 1.28-30). 18 Disse mais o Senhor Deus: Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma auxiliadora que lhe seja idônea. 19 Havendo, pois, o Senhor Deus formado da terra todos os animais do campo e todas as aves dos céus, trouxe-os ao homem, para ver como este lhes chamaria; e o nome que o homem desse a todos os seres viventes, esse seria o nome deles” (Gn 2.18-19).

[11]“O homem foi formado para ser um animal social” (John Calvin, Commentaries on The First Book of Moses Called Genesis,Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1981 (Reprinted), v. 1, (Gn 2.18), p. 128). Em outro lugar: “O homem é um animal social de natureza, consequentemente, propende por instinto natural a promover e conservar esta sociedade e, por isso, observamos que existem na mente de todos os homens impressões universais não só de uma certa probidade, como também de uma ordem civil” (João Calvino, As Institutas,II.2.13).

[12]“Pelo pecado estamos alienados de Deus” (João Calvino, Efésios, São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 1.9), p. 32). “Tão logo Adão alienou-se de Deus em consequência de seu pecado, foi ele imediatamente despojado de todas as coisas boas que recebera” (João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 2.5), p. 57). “Como a vida espiritual de Adão era o permanecer unido e ligado a seu Criador, assim também o dele alienar-se foi-lhe a morte da alma” (João Calvino, As Institutas, II.1.5). Vejam-se também: Francis A. Schaeffer, Poluição e a Morte do Homem,São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 46-47; John W. R. Stott, O Discípulo Radical, Viçosa, MG.: Ultimato, 2011, p. 43.

[13]Podemos também chamar de aspecto “lato”, “estrutural” ou “formal”. (Para uma visão panorâmica do uso destes termos, veja-se: Anthony A. Hoekema, Criados à Imagem de Deus,São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 84-88,101).

[14]Vejam-se: João Calvino, As Institutas,I.15.4; II.1.5; Juan Calvino, Breve Instruccion Cristiana, Barcelona: Fundación Editorial de Literatura Reformada, 1966, p. 13; João Calvino, Efésios, (Ef 4.24), p. 142; João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 8.5), p. 169; v. 2, (Sl 62.9), p. 579.

[15]Podemos também chamar de aspecto “estrito”, “funcional” ou “material”. (Para uma visão panorâmica do uso destes termos, veja-se: Anthony A. Hoekema, Criados à Imagem de Deus,São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 84-88,101). “Ele é a criatura que, inicialmente, foi criada à imagem e semelhança de Deus, e essa origem divina e essa marca divina nenhum erro pode destruir. Contudo ele perdeu, por causa do pecado, os gloriosos atributos de conhecimento, justiça e santidade que estavam contidos na imagem de Deus. Todavia, esses atributos ainda estão presentes em ‘pequenas reservas’ remanescentes da sua criação; essas reservas são suficientes não somente para torná-lo culpado, mas também para dar testemunho de sua primeira grandeza e lembrá-lo continuamente de seu chamado divino e de seu destino celestial” (Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara d’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 17-18). Vejam-se: João Calvino, O Livro dos Salmos,São Paulo: Paracletos, 1999,v. 2, (Sl 51.5), p. 431-432; John Calvin, Commentaries on the Epistle of James, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996, (Calvin’s Commentaries, v. 22), (Tg 3.9), p. 323; As Institutas, I.15.8; II.2.26,27; Hermisten M.P. Costa, João Calvino 500 anos: introdução ao seu pensamento e obra, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 211ss.; W. Gary Crampton; Richard E. Bacon, Em Direção a uma Cosmovisão Cristã, Brasília, DF.: Monergismo, 2010, p. 27; Herman Dooyeweerd, No Crepúsculo do Pensamento, São Paulo: Hagnos, 2010, p. 260-261; François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 591; Emil Brunner, Dogmática: A Doutrina Cristã da Criação e da Redenção, São Paulo: Fonte Editorial, 2006, v. 2, p. 88; Cornelius Van Til, Epistemologia Reformada, Natal, RN.: Nadere Reformatie Publicações, 2020, p. 30, E-book  Posição  448 de 715

[16]Ver: James M. Boice, O evangelho da Graça, São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 111. Agostinho (354-430), comentando o Salmo 148, faz uma analogia muito interessante: “Como nossos ouvidos captam nossas palavras, os ouvidos de Deus captam nossos pensamentos. Não é possível agir mal quem tem bons pensamentos. Pois as ações procedem do pensamento. Ninguém pode fazer alguma coisa, ou mover os membros para fazer algo, se primeiro não preceder uma ordem de seu pensamento, como do interior do palácio, qualquer coisa que o imperador ordenar, emana para todo o império romano; tudo o que se realiza por meio das províncias. Quanto movimento se faz somente a uma ordem do imperador, sentado lá dentro? Ao falar, ele move somente os lábios; mas move-se toda a província, ao se executar o que ele fala. Assim também em cada homem, o imperador acha-se no seu íntimo, senta-se em seu coração; se é bem e ordena coisas boas, elas se fazem; se é mau, e ordena o mal, o mal se faz” (Agostinho, Comentário aos Salmos, São Paulo: Paulus, (Patrística, 93), 1998, v. 3, (Sl 148.1-2), p. 1126-1127).

[17]Veja-se: João Calvino, Exposição de Romanos,São Paulo: Paracletos, 1997, (Rm 8.7), p. 267.

[18]“Moral e espiritualmente, o caráter do homem estampa a imagem de Satanás, e não a de Deus. Ora, é precisamente isso o que a Bíblia quer dizer quando fala sobre o homem caído no pecado como ‘filho do diabo’. (Jo 8.44; Mt 13.38; At 13.10 e 1Jo 3.8)” (J.I. Packer, Vocábulos de Deus, São José dos Campos, SP.: Fiel, 1994, p. 67). “Tampouco é absurdo dizer que a imagem em parte se perdeu e em parte se conservou, e que no mesmo sujeito há a imagem de Deus e a do diabo em diferentes aspectos” (François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 588).

[19]Cf. Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 3, 190.

[20]“Não é arrogância humana acreditar que seja a coroa, o alvo da criação. Ela o é, não apenas porque seja a última numa série ascendente, mas porque, pela sua natureza, foi estabelecida para isso” (Emil Brunner, Dogmática: A Doutrina Cristã da Criação e da Redenção, São Paulo: Fonte Editorial, 2006, v. 2, p. 99).

[21]Lloyd-Jones explora com vivacidade a analogia do texto. Veja-se: D. M. Lloyd-Jones, O Caminho de Deus, não o nosso, p. 43-46.

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