A Pessoa e Obra do Espírito Santo (154)
6.3.2.2. O privilégio e a responsabilidade dos que pregam (continuação)
A graça de Deus é responsabilizadora. Paulo trabalha com esse princípio para demonstrar a loucura da arrogância de determinados mestres coríntios. Nos capítulos 1 e 3 Paulo indica o partidarismo existente na Igreja insuflado por falsos mestres. Agora, ele utiliza uma palavra para descrever o seu ministério, mostrando que pode ser aplicada ao trabalho de todos os que servem ao Senhor. Diz ele: somos despenseiros de Deus: “Assim, pois, importa que os homens nos considerem como ministros de Cristo e despenseiros dos mistérios de Deus. 2 Ora, além disso, o que se requer dos despenseiros é que cada um deles seja encontrado fiel” (1Co 4.1-2).
A palavra usada por Paulo (oi)kono/moj) fora empregada por Cristo para se referir ao “mordomo fiel” (Lc 12.42). Em outra parábola, o contraste é estabelecido por intermédio da referência que Cristo fez ao “administrador infiel” (Lc 16.8), que tem o sentido de “injusto”, “iníquo”, “perverso”.[1]
A palavra traduzida por “despenseiro”, tinha o sentido de “mordomo” (Lc 12.42); “administrador” (Lc 16.1); “tesoureiro” (Rm 16.23) e “curador” (Gl 4.2).
O “despenseiro” era em geral um escravo colocado à frente dos negócios do seu senhor (mordomo, gerente das terras, cozinheiros chefes, contador etc.). Deste modo, o senhor ficava livre de maiores encargos administrativos.[2] Por sua vez, o mordomo usufruía de considerável autoridade no gerenciamento do que lhe fora confiado.
No entanto, apesar de toda a sua relevância para o dia a dia do seu senhor, a verdade é que o despenseiro não passava de um escravo. “Em relação ao seu senhor, ele era um escravo; em relação aos escravos, era um superintendente”, pontua Morris (1914-2006).[3]
Para este ofício, além da competência, um ingrediente fundamental era a honestidade; daí Paulo falar que “o que se requer dos despenseiros (oi)kono/moj) é que cada um deles seja encontrado fiel (pisto/j)” (1Co 4.2).
Em outro contexto, Paulo aplica a expressão “despenseiro” aos presbíteros, dizendo que o bispo deve ser “irrepreensível como despenseiro (oi)kono/moj) de Deus” (Tt 1.7). Do mesmo modo, Pedro falando à Igreja em geral, diz que devemos servir uns aos outros em nossas vocações,“cada um conforme o dom que recebeu, como bons despenseiros (kalo/j oi)kono/moj) da multiforme graça de Deus”(1Pe 4.10).
Portanto, partindo do texto, podemos aprender algumas lições sobre os fiéis despenseiros de Deus no exercício de sua vocação.
Como temos demonstrado, o nosso trabalho será em vão se Deus não abençoar. Portanto, a disputa para saber quem é o maior, e eficiente, é tolice. A nossa vocação vem de Deus. Ele mesmo é quem dá o crescimento. (au)ca/nw)(1Co 3.7). Aos Colossenses, Paulo, usando uma linguagem enfática, diz que a Igreja ligada a Cristo, “cresce (au)/cw) o crescimento (au)/chsij) que procede de Deus”(Cl 2.19).
Devemos ter a consciência de que “não lograremos progresso a menos que o Senhor faça próspera a nossa obra, os nossos empenhos e a nossa perseverança, de modo a confiarmos à sua graça a nós mesmos e tudo o que fazemos”, exorta-nos Calvino.[4]
Portanto, toda a glória pertence ao Senhor que se digna em agir ordinariamente por meio de seus servos fiéis.[5]
“O reino é de todo obra de Deus ainda quando opera em e através dos homens”, enfatiza Ladd (1911-1982).[6]
Percebamos então a grandeza do Evangelho, a responsabilidade e a necessidade de humildade e senso de privilégio daquele que o proclama. Desse modo, exorta Calvino: “Quando subimos ao púlpito, não é para trazer nossos sonhos e fantasias”.[7] Deus como Autor do Evangelho e da pregação, deseja falar e ser ouvido por intermédio de seus servos. Ele amorosamente fala nos atraindo para si.
A igreja deve ter sensibilidade para com isso. Por intermédio da pregação fiel, é Deus mesmo quem fala, conforme enfatiza Calvino em lugares diferentes:
Isso deve acrescer em grande medida o nosso respeito pelo Evangelho, visto que devemos pensar dele não tanto em virtude dos homens, propriamente ditos, mas de Cristo mesmo, falando por meio dos lábios deles. Ao mesmo tempo quando prometeu que declararia o Nome de Deus aos homens, havia deixado de estar no mundo; e, todavia, não se desincumbira desse ofício em vão. E na verdade Ele o tem cumprido através de seus discípulos.[8]
Assim que ouvimos o Evangelho pregado pelos homens, devemos considerar que não é propriamente eles quem falam, mas é Cristo quem fala por meio deles. E essa é uma vantagem singular, a saber, que Cristo amorosamente nos atrai para si por meio de sua própria voz, para que de forma alguma duvidemos da majestade de Seu reino.[9]
O Evangelho é a publicação da graça plenificada em Cristo. Em Cristo temos a suma do Evangelho. A revelação aberta de Deus.[10]Portanto, crer no Evangelho significa consentir com mensagem revelada de Deus.[11]
Por sua vez, diz o Senhor Jesus: “Quem me rejeita (a)qete/w) (negar,[12]aniquilar,[13] anular,[14] revogar)[15] e não recebe (lamba/nw) as minhas palavras tem quem o julgue; a própria palavra que tenho proferido, essa o julgará no último dia”(Jo 12.48).
A rejeição a Cristo já estabelece o julgamento. O não receber envolve o receber outra palavra, outra direção oposta. Não há sínteses possíveis aqui.
Quem rejeita o Filho, do mesmo modo, renega o Pai: “Quem vos der ouvidos ouve-me a mim; e quem vos rejeitar (a)qete/w) a mim me rejeita (a)qete/w); quem, porém, me rejeitar (a)qete/w) rejeita (a)qete/w) aquele que me enviou” (Lc 10.16).
Os discípulos por crerem no Filho creram também no Pai. Eles receberam o Enviado e quem o enviou. Em Jesus vemos o Pai em sua manifestação máxima. O próprio Senhor afirma: “Quem vos der ouvidos ouve-me a mim; e quem vos rejeitar a mim me rejeita; quem, porém, me rejeitar rejeita aquele que me enviou (a)poste/llw)”(Lc 10.16).
Maringá, 08 de abril de 2021.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] a)diki/a (Lc 13.27; 18.6; Rm 1.18,29 etc.).
[2] “Para que um rico proprietário de terras não fosse um escravo para os seus escravos, tinha que delegar a outrem o trabalho rotineiro e administrativo” (Canon Leon Morris, 1 Coríntios: introdução e comentário, (1Co 4.1), p. 59).
[3]Canon Leon Morris, 1 Coríntios: introdução e comentário, (1Co 4.1), p. 59.
[4]J. Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 3.7), p. 106.
[5]“Toda a glória é atribuída ao Senhor, mas o trabalho honesto não é menosprezado” (C.H. Spurgeon, Conselhos para Obreiros, São Paulo: Vida Nova, 2015, p. 102).
[6]G.E. Ladd, Reino de Deus: In: E.F. Harrison, ed. Diccionario de Teologia, Michigan: TELL., 1985, p. 450b.
[7] John Calvin, Sermon Dt 1.16-18 (Sermão 4): In: Herman J. Selderhuis, ed. Calvini Opera Database 1.0, Netherlands: Instituut voor Reformatieonderzoek, 2005, v. 25), p. 646.
[8]João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 2.11), p. 68.
[9]João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 2.7), p. 67. “O cristianismo é, essencialmente, uma religião da Palavra de Deus. Nenhuma tentativa de entender o cristianismo pode ser bem sucedida se deixa despercebida o nega a verdade de que o Deus vivo tomou a iniciativa de se revelar de modo salvífico à humanidade caída; ou que a Sua revelação de Si mesmo foi dada pelo meio mais direto de comunicação que nos é conhecido, a saber, por uma palavra ou palavras; ou que conclama aos que escutaram Sua Palavra a transmiti-la aos outros” (John Stott, Eu Creio na Pregação, São Paulo: Editora Vida, 2003, p. 15).
[10]Veja-se: João Calvino, Exposição de Segundo Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1995, (2Co 3.18), p. 78.
[11] Veja-se: João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1, (Jo 3. 32), p. 147.
[12] Mc 6.26.
[13] 1Co 1.19.
[14] Gl 2.21; 1Tm 5.12.
[15] Gl 3.15.