A Pessoa e Obra do Espírito Santo (110)
6.2.4. O Espírito Santo e a tentação de Jesus Cristo[1]
A seguir, foi Jesus levado pelo Espírito ao deserto, para ser tentado (peira/zw)[1] pelo diabo. (Mt 4.1).
1Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão e foi guiado pelo mesmo Espírito, no deserto (…). 14 Então, Jesus, no poder do Espírito, regressou para a Galiléia, e a sua fama correu por toda a circunvizinhança. (Lc 4.1,14).
A natureza humana de Jesus era real. Os seus sofrimentos foram espirituais e físicos (Sl 22.6).[1] Somente assim, Ele poderia, como de fato foi, ser tentado (Hb 2.18).
O evangelista Marcos diz que o Espírito guiou, conduziu intimamente (“impeliu”[1] (Mc 1.12) Jesus ao deserto para ser tentado, permanecendo com Ele durante todos os quarenta dias (Lc 4.1,2). A relação entre ao batismo e a tentação está conectada pelo tempo e causalidade: “E logo o Espírito o impeliu para o deserto” (Mc 1.12/Mt 4.1).[2]
O tentador
Os homens podem se tornar em agentes terríveis de tentação. Os servos de Deus do Antigo Testamento foram duramente provados (Hb 11.37). Os judeus agiram assim com Paulo (At 20.19), já que não pouparam nem mesmo Jesus Cristo, o Deus Encarnado [Mt 16.1 (Mc 8.11); Mt 19.3 (Mc 10.2); Mt 22.18,35 (Mc 12.15); Lc 11.16; Jo 8.6].
Todavia, Satanás é “o tentador”, aquele que sabe usar como ninguém as circunstâncias para conseguir a concretização de seus propósitos maléficos. (Mt 4.1,3; Mc 1.13; Lc 4.2,13; 1Co 7.2/1Co 7.5; 1Ts 3.5; Ap 2.10). O seu objetivo é nos alienar espiritualmente de Deus, fazendo-nos seus escravos e habitação do pecado. (Jo 8.34/Rm 6.17-23; 7.17).
Satanás é especialista em tentar. Ele está habilmente preparado, tendo se aperfeiçoado durante toda a história da humanidade, descobrindo sempre novas estratégias, verificando uma melhor forma de conseguir o seu intento, os seus objetivos. “Suponho que não haja nenhum aspecto da natureza humana que seja desconhecido de Satanás”, especula Spurgeon (1834-1892).[1] Ele é “perito” em tentação. Como diz Packer: “Satanás testa o povo de Deus ao manipular as circunstâncias dentro dos limites que lhe são permitidos por Deus”.[2]
As duas primeiras tentações descritas têm início com a argumentação provocativa de Satanás: “Se és Filho de Deus” ou: “Visto que é o Filho de Deus” (Mt 4.3,6).
O relato de Lucas nos dá entender que Jesus foi tentado desde a sua chegada. As tentações Messiânicas, incluindo a dor e a humilhação, fazem parte essencial dos preparativos para o Ministério que o Pai lhe confiara.
A tentação é muito penosa, contudo, quando a vencemos, convictos da sustentação de Deus (1Co 10.13), podemos perceber o quão enriquecedora ela pode ser para a nossa vida espiritual.[3]
O primeiro Adão sucumbiu à tentação, desobedecendo a Deus. Jesus Cristo, o último Adão deve ser tentado para poder levar sobre si o pecado dos eleitos. A tentação foi crucial para o seu Ministério. Se Cristo não vencesse o presunçoso tentador,[1] jamais poderia ser o Salvador daqueles que estavam sob o “domínio” de Satanás. É relevante observar, que o seu ministério público teve início após este episódio, começando com um sermão (Lc 4.16-21/Is 61.1-2).
A tentação promovida por Satanás contra Jesus Cristo indica a sua convicção de que Ele era realmente homem, portanto, passível de queda. Jamais encontramos nas Escrituras satanás desafiando diretamente a Deus. Ele age ordinariamente tentando os servos de Deus a desobedecerem a Deus e, consequentemente, a se afastarem do Senhor. Porém, não o vemos provocando um confronto direto.
Satanás parcialmente descrente ou ignorante quanto ao significado da encarnação de Jesus Cristo e, ao mesmo tempo, convicto de sua humanidade, o tenta, como fizera com Adão e continua fazendo com os homens durante todo o tempo que Deus lhe tem permitido agir dentro de uma esfera restrita.
O seu desejo é fazer com que Jesus duvide da sua filiação divina ou, que tente prová-la por meio de algum sinal maravilhoso, sucumbindo assim, à tentação. Aliás, este foi um desafio comum a Jesus Cristo: usar de seu poder eterno para fazer o que desejasse à revelia de sua missão. No entanto, em tudo ele se submeteu ao Pai conforme o pacto eterno (Mt 26.29; Jo 8.28, 29,42; 17.1-6).
Na realidade, Satanás podia, como de fato fez, tentar a Jesus de forma externa, contudo, não podia fazê-lo internalizar a tentação. Ele foi tentado, mas, nunca se sentiu tentado. Ele viveu sempre na plenitude do Espírito. O que, sob a perspectiva de Satanás foi tentação, pela perspectiva correta e toda abrangente de Deus, foi provação.[2]
Maringá, 12 de fevereiro de 2021.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] Vejam-se: Sinclair Ferguson, O Espírito Santo,São Paulo: Editora Os Puritanos, 2000, p. 61-64; Geerhardus Vos, Teologia Bíblica, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 399-412. O comentário de Hendriksen, especialmente aqui, é altamente instrutivo (William Hendriksen, Mateus, São Paulo: Cultura Cristã, 2001, v. 1, (Mt 4), p. 309ss.).
[2] peira/zw e peira/w traduzem normalmente (nsh) na LXX. [LXX: peirasmo/j) (Dt 4.34; 6.16; 7.19; 9.22; 29.3; Sl 95.9; Ec 3.10; 4.8; 5.3,14; 8.16); peira/zw (Ex 15.25; Dt 4.34; Dn 1.14) e peira/w (Pv 16.29)]. peira/zw ocorre 36 vezes no NT., igualmente sendo pouco usado na literatura secular.
O verbo peira/w (“intentar”, “esforçar-se”, “examinar”, “tentar”, “experimentar”)(* At 9.26; 26.21), ocorre mais vezes na literatura secular. peira/w é proveniente da raiz per,(*) que está relacionada com pera/w (“passar através”, “ir”, “avançar”, “atravessar”, “dirigir através de” )(não ocorre no NT. nem na LXX) e pe/raj (“termo”, “fim”, “limite”) (* Mt 12.42; Lc 11.31; Rm 10.18; Hb 6.16). É de peira/w que provém o termo latino “peritus”, português “perito”, aquele que tem perícia, habilidade, destreza, instrução; sabe por experiência, experimentado. Aliás, esta era uma das conotações de peira/w no grego secular, indicando “saber por experiência” (Veja-se: Heródoto, História, Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d.], IV.159).
Peira/w, ainda que raramente, tem também um sentido religioso. Heródoto (484-420 a.C.) narra a resposta da pitonisa de Delfos, a Glauco: “Tentar(peira/w) os deuses ou cometer uma injustiça é a mesma coisa”(Heródoto, História, VI.86). Em outro lugar, Heródoto narra que Creso, querendo se certificar da revelação dos oráculos da Grécia e da Líbia, enviou diversos delegados a consultar em várias regiões os mais diferentes deuses; diz ele: “Esses delegados eram enviados com o fito de experimentar (peira/w) o acerto e a legitimidade dos oráculos da Grécia e da Líbia.”(Heródoto, História, I.46). (Veja-se: H. Seesemann, peira/w: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, v. 6, p. 23-36; peira/zw: In: William F. Arndt; F.W. Gingrich, A Greek-English Lexicon of the New Testament and Other Early Christian Literature, 2. ed. Chicago: University Press, 1979, p. 640).
A diferença entre os verbos “peira/zw“ e “dokima/zw” está no emprego do teste: enquanto que “peira/zw“ é usado mais enfaticamente com o propósito negativo, de “tentar” (especialmente nos escritos de Paulo), “dokima/zw” ressalta o aspecto positivo de “provar” para “aprovar”, indicando a genuinidade do que foi testado (2Co 8.8; 1Ts 2.4; 1Tm 3.10). No entanto, ambos os verbos podem ser usados indistintamente, mesmo não sendo “perfeitamente sinônimos” (Veja-se: H. Seesemann, peira/w: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1982 (Reprinted), v. 6, p. 23; H. Haarbeck, Tentar: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento,São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 4, p. 599; Richard C. Trench, Synonyms of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1985 (Reprinted), p. 278ss.).
(*) Partícula enclítica que confere força intensiva e extensiva à palavra a qual é anexada: “muito”, “grande”, etc. (Veja-se: H.E. Dana; J.R. Mantey, Manual de Gramatica del Nuevo Testamento, Buenos Aires: Casa Bautista de Publicaciones, 1975, § 235, p. 255; Lindell; Scott, Greek-English Lexicon, Oxford: At The Clarendon Press, 1935, p. 544; William F. Arndt; F. Wilburn Gingrich, A Greek-English Lexicon of the New Testament, Chicago: The University of Chicago Press, 1957, p. 649). [1] “Mas eu sou verme e não homem; opróbrio dos homens e desprezado do povo” (Sl 22.6).
[3] “Mas eu sou verme e não homem; opróbrio dos homens e desprezado do povo” (Sl 22.6).
[4] E)kba/llw. A palavra tem o sentido de “tirar”, “expelir”. (Mt 7.22; 8.16,31; Mc 1.34,39; 3.15, etc.). “Jesus, estando cheio do Espírito Santo, sentiu sua pressão no mais profundo de sua alma” (Abraham Kuyper, A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 132).
[5] Veja-se: Geerhardus Vos, Teologia Bíblica, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 399.
[6] C.H. Spurgeon, Um Antídoto contra os Artifícios de Satanás: In: Bruce H. Wilkinson, ed. ger. Vitória sobre a Tentação, 2. ed. São Paulo: Mundo Cristão, 1999, p. 182.
[7] J.I. Packer, Tentação: In: J.D. Douglas, ed. org., O Novo Dicionário da Bíblia, São Paulo: Junta Editorial Cristã, 1966, v. 3, p. 1581a.
[8]”O homem que ainda não descobriu o poder da tentação é o mais típico novato em questões espirituais. (…) O poder do inimigo contra nós somente é inferior ao poder de Deus. Ele é mais poderoso que que qualquer homem que jamais viveu; e os santos do Velho Testamento caíram diante dele” (D.M. Lloyd-Jones, Por Que Prosperam os Ímpios?, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1985, p. 16-17).
[9] “Talvez a prova cabal do poder, da autoconfiança e da habilidade do diabo se ache no fato de que ele não hesitou em tentar e atacar até mesmo o Filho de Deus. Ele O abordou confiantemente, seguro de si, pois havia derrotado todos os outros” (D.M. Lloyd-Jones, O Combate Cristão,São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1991, p. 73).
[10] Veja-se: Geerhardus Vos, Teologia Bíblica, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 402.