A Pessoa e Obra do Espírito Santo (15)
6.1. Ministério Escriturístico[1]
O Espírito Santo é o poder atuante na Igreja, e o Espírito Santo jamais honrará coisa alguma senão a Sua Palavra. Foi o Espírito Santo quem nos deu esta Palavra. Ele é o seu Autor. Não é dos homens! Tampouco a Bíblia é produto da “carne” e do “sangue”. (…) O Espírito não honrará nada, senão Sua Palavra. Portanto, se não crermos e não aceitarmos sua Palavra, ou se de algum modo nos desviarmos dela, não teremos direito de esperar a bênção do Espírito Santo. O Espírito Santo honrará a verdade, e não honrará outra coisa. Seja o que for que fizermos, se não honrarmos esta verdade, Ele não nos honrará. – D.M. Lloyd-Jones (1899-1981).[1]
As Sagradas Escrituras são as joias mais caras que Cristo nos deixou e que a igreja de Deus preservou como registros públicos do céu, de maneira que não foram perdidos. – Thomas Watson (c. 1620-1686).[2]
O registro e a preservação das Escrituras são obras sobrenaturais. Nenhum livro na história foi mais atacado, fragmentado, caluniado e dissecado do que a Bíblia. No entanto, ela permanece inalterável. Deus nos ensina sobre a sua Providência por meio das Escrituras e com a própria preservação da Escritura.
Bavinck faz uma sensível analogia: “Cristo carregou a cruz, e o servo [Escritura] não é maior que seu mestre. A Escritura é a criada de Cristo. Ela partilha de sua difamação e enfrenta a hostilidade da humanidade pecadora”.[3]
Como o Autor da Escritura é o Trino Deus eterno, os seus ensinamentos permanecem a despeito das mudanças culturais e dos valores mutáveis da sociedade em cada época.[4]
Durante toda a história a Palavra de Deus foi alvo dos mais diversos ataques: entre eles, o mais comum é a suposição de sua falibilidade. No entanto, um ataque mais sutil que também permeou boa parte da História da Igreja, é a concepção ainda que muitas vezes velada, de que as Escrituras não são suficientes para nos dirigir e orientar.
Melanchthon (1497-1560) e Lutero (1483-1546) depararam-se explicitamente com esse problema bem no início da Reforma Protestante. Por volta de 1520, na pequena, porém, próspera e culta cidade alemã de Zwickau, surgiu um grupo de homens “iluminados” – chamados por Lutero de “profetas de Zwickau”[5] –, que alegava ter revelações especiais vindas diretamente de Deus, entendendo ter sido chamado por Deus para “completar a Reforma”. A sua religião partia sempre de uma suposta revelação interior do Espírito. Acreditavam que o fim dos tempos estava próximo – os ímpios seriam exterminados –, e que por isso, não era necessário estudar teologia visto que o Espírito estaria inspirando os pobres e ignorantes.
Assim pensando, esses homens diziam:
De que vale aderir assim tão estritamente à Bíblia? A Bíblia! Sempre a Bíblia! Poderá a Bíblia nos fazer sermão? Será suficiente para a nossa instrução? Se Deus tivesse tencionado ensinar-nos, por meio de um livro, não nos teria mandado do céu, uma Bíblia? Somente pelo Espírito é que poderemos ser iluminados. O próprio Deus fala dentro de nós. Deus em pessoa nos revela aquilo que devemos fazer e aquilo que devemos pregar.[6]
Um certo alfaiate, Nícolas Storck, escolheu doze apóstolos e setenta e dois discípulos, declarando que finalmente tinham sido devolvidos à Igreja os profetas e apóstolos.[7] Ele, acompanhado de Marcos Stübner e Marcos Tomás foi a Wittenberg (27/12/1521) – que já enfrentava tumultos liderados por Andreas B. von Carlstadt (c. 1477-1541) e Gabriel Zwilling (c. 1487-1558) –, pregar o que considerava ser a verdadeira religião cristã, contribuindo grandemente para a agitação daquela cidade. Stübner, antigo aluno de Wittenberg, justamente por ter melhor preparo, foi comissionado a representá-los.
Melanchthon que conversou com Stübner, interveio na questão, ainda que timidamente. Storck,[8] mais inquieto, logo partiu de Wittenberg. Stübner, no entanto, permaneceu, realizando ali um intenso e eficaz trabalho proselitista; “era um momento crítico na história do cristianismo”, sumaria Atkinson (1914-2011).[9]
Comentando os problemas suscitados pelos “espiritualistas”, o historiador D’aubigné (1794-1872) conclui: “A Reforma tinha visto surgir do seu próprio seio um inimigo mais tremendo do que papas e imperadores. Ela estava à beira do abismo”.[10]
Isso torna completamente justificável o clamor ouvido em Wittenberg pelo auxílio de Lutero que, consciente da necessidade de sua volta, abandonou a segurança de Warteburgo retornando à Wittenberg[11] a fim de colocar a cidade em ordem (1522), o que fez, com firmeza e espírito pastoral.[12] Mais tarde, Lutero escreveria: “Onde, porém, não se anuncia a Palavra, ali a espiritualidade será deteriorada”.[13]
Não nos iludamos, essa forma de misticismo ainda está presente na Igreja e, tem sido extremamente perniciosa para o povo de Deus, acarretando um desvio espiritual e teológico, deslocando o “eixo hermenêutico” da Palavra para a experiência mística, nos afastando assim, da Palavra e, consequentemente, do Deus da Palavra, contribuindo para desviar a igreja de sua unidade na verdade, atributo essencial da igreja.
O trágico é que justamente aqueles que supõem desfrutarem de maior “intimidade” com Deus, são os que patrocinam o distanciamento da Palavra revelada de Deus. Davi enfatiza: “A intimidade do Senhor é para os que o temem, aos quais ele dará a conhecer a sua aliança”(Sl 25.14).[14]
Portanto, a nossa intimidade com Deus revela-se em nosso apego à sua Palavra, à sua aliança. Nesse texto, Calvino faz uma aplicação bastante contextualizada:
É uma ímpia e danosa invenção tentar privar o povo comum das Santas Escrituras, sob o pretexto de serem elas um mistério oculto, como se todos os que o temem de coração, seja qual for seu estado e condição em outros aspectos, não fossem expressamente chamados ao conhecimento da aliança de Deus.[15]
Nós somos herdeiros dos princípios bíblicos da Reforma; para nós, como para os Reformadores, a Palavra de Deus é a fonte autoritativa de Deus para o nosso pensar, crer, sentir e agir: A Palavra de Deus nos é suficiente. Sob esta ótica, considerando o Espírito como Autor das Escrituras, estudemos o assunto.
Maringá, 09 de outubro de 2020.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] Veja-se mais detalhes sobre alguns aspectos deste assunto In: Hermisten M.P. Costa, A Inspiração e Inerrância das Escrituras: Uma Perspectiva Reformada, 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2008.
[2] D.M. Lloyd-Jones, O Combate Cristão, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1991, p. 103.
[3] Thomas Watson, A Fé Cristã: estudos baseados no Breve Catecismo de Westminster, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 44.
[4]Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 1, p. 439.
[5]Veja-se: John MacArthur, Por que ainda prego a Bíblia após quarenta anos de ministério: In: Mark Dever, ed., A Pregação da Cruz, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 135.
[6] Os principais líderes eram: Nícolas Storck, Marcos Tomás e Marcos Stübner. Tomás Münzer (c. 1490-1525), tornar-se-ia o mais famoso dos que foram influenciados por esse círculo, tendo mais tarde as suas ideias próprias, ainda que fiel aos mesmos princípios. (Veja-se: George H. Williams, La Reforma Radical, México: Fondo de Cultura Económica,1983, p. 66ss; Jean Delumeau, O Nascimento e Afirmação da Reforma, São Paulo: Pioneira, 1989, p. 101). Delumeau (1923-2020) diz que tal grupo considerava a teologia de Lutero do Cristo “doce como mel”, um tanto “efeminada”, contrastando com isso a rudeza da cruz (Jean Delumeau, O Nascimento e Afirmação da Reforma, São Paulo: Pioneira, 1989, p. 101).
[7]Apud J.H. Merle D’aubigné, História da Reforma do Décimo-Sexto Século, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, (s.d.), v. 3, p. 64.Mais tarde, Calvino escreveria, possivelmente referindo-se aos “libertinos”, também conhecidos como “espirituais”: “Ora, surgiram, em tempos recentes, certos desvairados que, arrogando-se, com extremada presunção, o magistério do Espírito, fazem pouco caso de toda leitura da Bíblia e se riem da simplicidade daqueles que ainda seguem, como eles próprios a chamam, a letra morta e que mata.
“Eu, porém, gostaria de saber deles que tal é esse Espírito de cuja inspiração se transportam a alturas tão sublimadas que ousem desprezar como pueril e rasteiro o ensino das Escrituras? Ora, se respondem que é o Espírito de Cristo, certeza dessa espécie é absurdamente ridícula, se, na realidade, concedem, segundo penso, que os Apóstolos de Cristo e os demais fiéis na Igreja Primitiva não de outro Espírito hão sido iluminados. O fato é que nenhum deles daí aprendeu o menoscabo da Palavra de Deus; ao contrário, cada um foi antes imbuído de maior reverência, como seus escritos o atestam mui luminosamente…..
“… Não é função do Espírito Que nos foi prometido configurar novas e inauditas revelações ou forjar um novo gênero de doutrina, mediante quê sejamos distraídos do ensino do Evangelho já recebido; ao contrário, Sua função é selar-nos na mente aquela própria doutrina que é recomendada através do Evangelho” (J. Calvino, As Institutas, I.9.1). Veja-se também: As Institutas, I.9.2-3.
McNeill (1885-1975) explica que o termo “libertino” foi usado por Calvino para “designar uma seita religiosa que se espalhou na França e na Península Dinamarquesa, a qual, dando ênfase ao Espírito, rejeitava a Lei. Posteriormente, o termo veio a ser aplicado em Genebra, àqueles que se opunham à disciplina, os quais incluíam pessoas que desconsideravam a lei moral e outros, mais motivados politicamente em resistir a Calvino” (John T. McNeill, The History and Character of Calvinism, New York: Oxford University Press, 1954, p. 169).
[8] Cf. J.H. Merle D’aubigné, História da Reforma do Décimo-Sexto Século, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, (s.d.), v. 3, p. 64-65; Heinrich W. Erbkam, Münzer: In: Philip Schaff, ed. Religious Encyclopaedia: or Dictionary of Biblical, Historical, Doctrinal, and Practical Theology, 3. ed. rev. amp. New York: Funk & Wagnalls Company, 1891, v. 2, p. 1596a).
[9]Como resultado das supostas revelações diretas de Deus, Storck e seus companheiros sustentavam que “dentro de cinco a sete anos os turcos invadiriam a Alemanha e destruiriam os sacerdotes e todos os ímpios. Storck via-se como cabeça de uma nova igreja, designada por Deus para completar a Reforma que Martinho Lutero deixara inacabada” (J.D. Weaver, Profetas de Zwickau: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, São Paulo: Vida Nova, 1988-1990, v. 3, p. 657).
[10] James Atkinson, Lutero e o Nacimiento del Protestantismo, 2. ed. Madrid: Alianza Editorial, 1987, p. 254.
[11]J.H. Merle D’aubigné, História da Reforma do Décimo-Sexto Século, v. 3, p. 71.
[12]Justificando-se com o príncipe o motivo da sua volta, escreveu-lhe no dia de sua chegada a Wittenberg, 7 de março de 1522: “Não são acaso os Wittemberguenses as minhas ovelhas? Não mas teria confiado Deus? E não deveria eu, se necessário, expor-me à morte por causa delas?” (Apud J.H. Merle D’aubigné, História da Reforma do Décimo-Sexto Século, v. 3, p. 83).
[13]Lutero, iniciando no dia 09/3/1522, pregou oito dias consecutivos em Wittenberg. Veja o seu primeiro sermão In: Martinho Lutero, Pelo Evangelho de Cristo: Obras selecionadas de momentos decisivos da Reforma, Porto Alegre; São Leopoldo, RS.: Concórdia Editora; Editora Sinodal, 1984, p. 153-161.Quanto aos detalhes da sua volta, vejam-se: J.H. Merle D’aubigné, História da Reforma do Décimo-Sexto Século, v. 3, p. 72ss.; James Atkinson, Lutero e o Nacimiento del Protestantismo, , 2. ed. Madrid: Alianza Editorial, 1987, p. 254ss.
[14] Martinho Lutero, Uma Prédica Para que se Mandem os Filhos à Escola (1530): In: Martinho Lutero: Obras Selecionadas, São Leopoldo; Porto Alegre, RS.: Sinodal; Concórdia, 1995, v. 5, p. 334.
[15] MacArthur, em seu longo e abençoado ministério pastoral, dá um testemunho eloquente e terrivelmente assustador: “Quando comecei no ministério, cerca de meio séculos atrás, eu esperava com certeza ter de lidar com investidas contra a Escritura por parte dos descrentes e mundanos. Eu estava preparado para isso. Os descrentes, por definição, rejeitam a verdade da Escritura e resistem à sua autoridade. (…) Mas desde o início do meu ministério até agora tenho testemunhado – e tive de lidar com – onda após onda de ataques contra a Palavra de Deus vindos, na maioria das vezes, de dentro da comunidade evangélica. No decorrer do meu ministério, quase todos os mais perigosos assaltos conta a Escritura que tenho visto têm vindo da parte de professores de seminário, pastores de megaigrejas, charlatães carismáticos da televisão, autores evangélicos populares, “psicólogos cristãos” e bloggers evangélicos extremistas. (…) A Bíblia é tratada como massinha de moldar, espremida e reformada para adaptar-se aos inconstantes interesses da cultura popular” (John MacArthur, A suficiência da Escritura: Salmo 19. In: John F. MacArthur, org., A Palavra Inerrante, São Paulo: Cultura Cristã, 2018, p. 26).
[16] João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1, (Sl 25.14), p. 558.
Pelo visto o que ocorre hoje nas igrejas onde a Palavra é deixada de lado, já ocorreu em sua longa história com os mesmos danos (ou até danos piores) para os enganados fiéis.