“Eu lhes tenho dado a tua Palavra” (Jo 17.1-26) (143)
c) Louvando a Deus (Continuação)
O cântico congregacional – que como tudo o mais deve ser acompanhado do verdadeiro afeto do coração[1] –, tornou-se uma parte importante na liturgia de Calvino.[2] Com o passar do tempo, o cântico a quatro vozes era utilizado no culto,[3] todavia, enfatizou o cântico congregacional. [4]
Ainda que Calvino fosse apreciador da harpa,[5] os cânticos eram como na sinagoga, sem acompanhamento instrumental.[6] Calvino entendia que algumas práticas do Antigo Testamento faziam parte da infância espiritual do povo;[7] entre elas, inclui o uso de instrumentos no culto:
Os levitas, sob a lei, eram justificados ao fazer uso de música instrumental no culto divino. (…) Seu intuito era treinar seu povo, enquanto eram ainda imaturos e semelhantes a crianças, necessitando de tais rudimentos, até a vinda de Cristo.[8] Mas então, quando a lídima luz do evangelho já dissipou as sombras da lei, e já nos ensinou que Deus deve ser servido numa forma mais simples, estaremos agindo como tolos e equivocados imitando aquilo que o profeta ordenou somente aos de seu próprio tempo.[9]
Em outro lugar falando sobre o emprego dos instrumentos musicais por parte dos levitas e seu uso em geral, comenta:
Não como se fossem em si mesmos necessários, mas só eram úteis como um auxílio elementar ao povo de Deus nos tempos antigos. Não devemos imaginar que Deus prescreveu a harpa como se sentisse, como nós, deleite na mera melodia dos sons; porém os judeus, que já estavam sob o peso dos anos, se restringiam ao uso de elementos tão infantis. O propósito deles era estimular os adoradores e incitá-los a mais ativamente exercer a celebração do louvor divino de todo o coração. Devemos lembrar que o culto divino nunca deve ser tomado como que consistindo em tais serviços externos, os quais só eram necessários para ajudar um povo fervoroso, porém ainda fraco e rude de conhecimento, no culto espiritual celebrado a Deus. É preciso observar a diferença, neste aspecto, entre seu povo sob o Velho e sob o Novo Testamento; pois agora em Cristo já se manifestou, e a Igreja já alcançou a plena maturidade, se introduzíssemos as sombras de uma dispensação expirada só iríamos sepultar a luz do evangelho. Disto transparece que os papistas, como tive ocasião de mostrar em outro lugar, ao empregarem música instrumental, não se pode dizer que imitam a prática do antigo povo de Deus, mas o imitam de uma maneira insensata e absurda, exibindo um tolo deleite naquele culto do Velho Testamento que era figurativo e que foi extinto com a vinda do Evangelho.[10]
Seria apenas arremedo se seguíssemos Davi hoje cantando com címbalos, flautas, tamborins e saltérios. De fato, alguns cristãos foram seriamente enganados em seu desejo de adorar a Deus com essa inclusão pomposa de órgãos, trombetas, oboés e instrumentos semelhantes. Isso só tem servido para deleitar o povo em sua vaidade e afastá-lo da verdadeira instituição que Deus tinha ordenado. Devemos, ao mesmo tempo, ser conscientes de todos os privilégios que temos em comum com os pais que viveram sob a lei e, por outro lado, devemos ser conscientes de todas as coisas pelas quais eles são separados de nós. Todas as coisas que temos em comum com eles são permanentes e devem ser mantidas até o fim do mundo. Mas não devemos continuar observando aquelas coisas que eram apenas para o tempo da lei, a menos que queiramos fazer uma mistura confusa que emaranhe céu e terra. Em uma palavra, os instrumentos musicais eram da mesma categoria de sacrifícios, candelabro, lâmpadas e coisas similares. (…)[11]
Como dissemos, devemos observar que aquilo que Deus instituiu para o tempo de símbolos (antes da vinda de nosso Senhor Jesus Cristo) deve ser deixado de lado e não aplicado hoje. É verdade que Deus deve ser louvado de coração, por instrumentos musicais e pela boca. Mas outra coisa é quando conduzimos a adoração a Deus na igreja. Se quisermos cantar louvores em nome de Deus, faremos muito melhor se cantarmos salmos, em vez de cânticos dissolutos comuns. Cantamos para dar-lhe graças – e não para produzir uma cerimônia solene como uma obra meritória que realizamos para Deus. Aqueles que adotam essa abordagem estão voltando a um tipo de judaísmo, como se quisessem misturar lei e evangelho, e, assim, sepultar o nosso Senhor Jesus Cristo. Quando somos informados que Davi cantou com instrumentos musicais, devemos nos lembrar cuidadosamente que não devemos fazer disso uma norma. Em vez disso, devemos reconhecer hoje que devemos cantar louvores a Deus com simplicidade, visto que as sombras da lei são passadas e, em nosso Senhor Jesus Cristo temos a verdade e a personificação de todas as coisas que foram dadas aos antigos pais no tempo de sua ignorância ou pequenez de fé. Eles não tinham a revelação que temos hoje no evangelho.[12]
As orações eram sugeridas mas não obrigatórias. Os pastores tinham liberdade para isso.[13] O Pai Nosso e o Credo Apostólico eram recitados pela Congregação. Colocou a Eucaristia como elemento integrante do culto público e, deu ênfase especial à Palavra de Deus como elemento central do culto.[14] “As Igrejas Reformadas simbolizaram isto nos edifícios que ergueram durante a Reforma, ao colocar o púlpito à frente e no centro do templo”, explica Reid (1913-1996).[15]
Maringá, 04 de setembro de 2020.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] “…. o falar e o cantar, se acompanham a oração, de nada valem diante de Deus e não Lhe são de nenhum proveito, se não são fruto do amor e se não vêm do fundo do coração. Muito ao contrário, porém, causam ao Senhor grande indignação e provocam fortemente a Sua ira, se só procedem da boca e dela saem, porque isso é abusar do Seu sacratíssimo nome e zombar da Sua majestade, como Ele o declara por intermédio do Seu profeta, dizendo: ‘Visto que este povo se aproxima de mim e com a sua boca e com os seus lábios me honra, mas o seu coração está longe de mim, e o seu temor para comigo consiste só em mandamentos de homens, que maquinalmente aprendeu, continuarei a fazer obra maravilhosa no meio deste povo; sim, obra maravilhosa e um portento; de maneira que a sabedoria dos seus sábios perecerá, e a prudência dos seus prudentes se esconderá’ (Is 29.13,14; Mt 15.7-9)” (João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 3, (III.9), p. 113). Ver: J. Calvino, As Institutas,III.20.31.
[2] Veja-se: As Institutas,III.20.31-32. Antes de Calvino ser persuadido a permanecer em Genebra (1536), a desafiante reforma em processo, feita pelo destemido Farel (1489-1565), além de limpar o templo de resquícios católicos, “tudo o que fez quanto à execução do culto divino foi musicar o Credo Apostólico e os Dez Mandamentos, e mandar cantá-los pela congregação. (…) Mas, até o momento, nem um livro de hinos, nem liturgia ajudavam as devoções dos fiéis” (Charles W. Baird, A Liturgia Reformada: Ensaio histórico,Santa Bárbara D’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 20).
[3]Cf. John H. Leith, A Tradição Reformada: Uma maneira de ser a comunidade cristã,p. 337 seguindo aqui as conclusões de Doumergue.Contraste esta informação com o próprio conceito de Calvino, As Institutas,III.20.32.
[4] John H. Leith, A Tradição Reformada: Uma maneira de ser a comunidade cristã, p. 299; Donald S. Wallace, Calvino, Genebra e a Reforma,São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p. 96.
[5]Ver: John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), v. 1, (Gn 4.20), p. 217-218; João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Parakletos, 2002, v. 3, (Sl 92.3), p. 461; Vicente Temudo Lessa, Calvino 1509-1564: Sua Vida e Obra,São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, [s.d.], p. 118. No século XVI, inclusive, as harpas eram bastante utilizadas em música sacra (Cf. Stanley Sade, ed. Dicionário Grove de Música: Edição concisa, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1994, “Harpa”, p. 409-411).
[6] W. Stanford Reid, El Culto Reformado: In: R. G. Turnbull, ed. ger. Diccionario de la Teología Práctica, Grand Rapids, Michigan: SLC., 1977, p. 42. Lembremo-nos de que a música estava subordinada à Palavra e que o órgão era usado no século XVI com “propósitos não litúrgicos” (John H. Leith, A Tradição Reformada: Uma maneira de ser a comunidade cristã,p. 336).
[7] Veja-se também: João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1, (Sl 24.7), p. 533.
[8] “Quanto aos instrumentos musicais, reconheço que eles foram usados pela Igreja de Deus e, aliás, por ordem divina. Entretanto, o povo de Deus tinha uma maneira e os caldeus outra. Pois a despeito de os judeus usarem trombetas e alaúdes e instrumentos musicais nos louvores a Deus, eles não estavam impingindo isso sobre o Senhor como um rito inerentemente santo. Havia um outro propósito nisso – Deus desejava levantá-los de qualquer maneira quando se mostravam preguiçosos (pois sabemos que nosso interesse na santidade é sempre frio, a não ser quando somos espicaçados). Deus, portanto, usou esses estímulos para fazer com que os judeus o adorassem com zelo mais fervoroso” (João Calvino, O Profeta Daniel: 1-6,v. 1, (Dn 3.2-7), p. 193-194).
[9]João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 3, (Sl 81.2), p. 278. Do mesmo modo, ver: John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), v. 2, (Ex 15.20), p. 262-263.
[10]João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Parakletos, 2002, v. 3, (Sl 92.3), p. 461-462. Do mesmo modo, conforme já indicamos, ver também: João Calvino, O Profeta Daniel: 1-6,São Paulo: Parakletos, 2000, v. 1, (Dn 3.2-7), p. 193-194.
[11]Veja-se: João Calvino,Exposição de Hebreus,São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 10.5), p. 257.
[12] João Calvino. “Sermões sobre 2 Samuel”. In: Timoty George, org. Reformation Commentary on Scripture. Old Testament V: 1-2 Samuel, 1-2 Kings, 1-2 Chronicles, InterVarsity Press: Downers Grove, IL, 2016, p. 167. Veja-se também, a página 170. (Devo essa referência ao Rev. Mauro Filgueiras Filho em correspondência privada).
[13] Veja-se, por exemplo: John Calvin, Forms of Prayer for the Church: In: H. Beveridge; J. Bonnet, Selected Works of John Calvin: Tracts and Letters, Grand Rapids, Mi: Baker Book House, 1983 (reprinted), v. 2, p, 100,101, 106.
[14] Veja-se: Philip Schaff, History of the Christian Church,Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 1996, v. 8, p. 371.
[15]W. Stanford Reid, El Culto Reformado: In: R. G. Turnbull, ed. ger. Diccionario de la Teología Práctica, p. 43.