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“Eu lhes tenho dado a tua Palavra” (Jo 17.1-26) (137) - Hermisten Maia

“Eu lhes tenho dado a tua Palavra” (Jo 17.1-26) (137)

c) Louvando a Deus  (Continuação)

A música e a plenitude do Espírito

     Paulo nos mostra que o cântico é uma expressão da adoração cristã marcada pela plenitude do Espírito Santo. Mais: A genuína adoração é operada pelo Espírito Santo em nós. O mesmo Espírito que falou por intermédio de Davi, inspirando-o a escrever, é o que nos ilumina na adoração a Deus (At 4.25):[1]

E não vos embriagueis com vinho, no qual há dissolução, mas enchei-vos do Espírito, falando entre vós com salmos (yalmo/j),[2]entoando e louvando de coração ao Senhor, com hinos(u(/mnoj)[3] e cânticos (%)dh)[4] espirituais” (Ef 5.18-19).

     Essas três palavras empregadas também conjuntamente em Cl 3.16 é difícil, senão impossível de se determinar com precisão a diferença entre elas e estabelecer a sua distinção na adoração cristã,[5] considerando inclusive que elas também eram empregadas no culto pagão.[6] Ainda que a compreensão desta distinção não seja fundamental para a nossa adoração, segundo nos parece o que estabelece o contraste da adoração cristã neste texto, é que esta é promovida pelo Espírito Santo, com coração sincero e, como não poderia deixar de ser, de modo espiritual. Portanto, os três termos parecem resumir a variedade e harmonia dos cânticos cristãos sob o impulso e direção do Espírito em fidelidade à Palavra revelada de Deus.

     Em Ef 5.18, Paulo faz um contraste entre a embriaguez, ainda que “religiosa”[7] – comportamento habitual entre os pagãos e ainda sobrevivente em alguns círculos da Igreja (Cf. 1Co 11.21) –, que gera a dissolução de todos os bons costumes, devassidão e libertinagem (a)swti/a),[8] e o enchimento do Espírito. Portanto, ao invés dos homens procurarem a excitação desenfreada da bebida,[9] ou a embriaguez como recurso para fugirem de seus problemas por meio do entorpecimento de suas mentes, devem buscar o discernimento do Espírito para compreender a vontade de Deus, que deve ser o grande objetivo de nossa existência (Ef 5.17). O homem com o discernimento próprio de Deus, não buscará alegria no vinho, antes, no Espírito Santo. O enchimento do Espírito exige consciência, não a perda do controle por meio do exacerbamento da emoção em detrimento da razão.

     O ato de cantar infindavelmente pode se tornar num meio de excessivo estímulo emocional que nos conduziria à embriaguez mental e emocional, tornando-nos presas fáceis de manipulações. Lamentavelmente a música tem sido usada com muita frequência com este propósito.[10] MacArthur conclui acertadamente: “O sentimentalismo irracional, estimulado geralmente pela repetição e ‘liberação’, se aproxima mais do paganismo dos gentios (ver Mt 6.7) do que de alguma forma de adoração bíblica”.[11]

            Agostinho (354-430), comentando de forma belíssima o salmo 148, diz:

Sabeis o que é hino? É um cântico com louvor a Deus. Se louvas a Deus sem canto, não é hino. Se cantas e não louvas a Deus, não é hino; se louvas outra coisa não pertencente ao louvor de Deus, apesar de cantares louvores, não é um hino. O hino, pois, consta de três coisas: canto [canticum], louvor [laudem], de Deus. Portanto, louvor a Deus com cântico chama-se hino.[12]

Maringá, 31 de agosto de 2020.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]“Que disseste por intermédio do Espírito Santo, por boca de Davi, nosso pai, teu servo: Por que se enfureceram os gentios, e os povos imaginaram coisas vãs?” (At 4.25).

[2]yalmo/j (* Lc 20.42; 24.44; At 1.20;13.33; 1Co 14.26; Ef 5.19; Cl 3.16) (Cântico de louvor, salmo). A palavra é usada para referir-se ao Livro de Salmos ou a algum Salmo específico (Cf. Lc 20.42; 24.44; At 1.20; 13.33), contudo em outras referências não são especificações daquele, parecendo indicar com isso, que além dos Salmos canônicos outros “salmos” (hinos cristãos) eram cantados na Igreja. Os salmos eram empregados apenas para hinos de louvor. O verbo ya/llw (* Rm 15.9; 1Co 14.15; Ef 5.19; Tg 5.13), tem o sentido básico de cantar, cantar louvores. Outra palavra da mesma raiz usada no NT. é yhlafa/w (* Lc 24.39; At 17.27; Hb 12.18; 1Jo 1.1), que tem o sentido de “mão” ou ato de tocar, apalpar. Parece-nos, portanto, que o louvor a Deus aqui caracterizado, envolvia o emprego de algum instrumento que fosse tocado com as mãos. Curiosamente encontrei posteriormente esta definição de yalmo/j em Isidro: “ação de sacudir as cordas de um instrumento” (Isidro Pereira, Dicionário Grego-Português e Português-Grego, 7. ed. Braga: Livraria Apostolado da Imprensa, (1990), p. 636). Na literatura clássica o verbo parece estar associado ao ato de tanger as cordas de um instrumento musical. Agostinho comentando o Salmo 66.2, diz: “Salmodiar é tomar um instrumento chamado saltério, e fazer a voz concordar com o toque e o movimento das mãos” (Agostinho, Comentário aos Salmos, São Paulo: Paulus, 1997, v. 2, (Sl (66) 67.3), p. 336). Em outro lugar: “…. salmos seriam as composições acompanhadas ao saltério” (Agostinho, Comentário aos Salmos, São Paulo: Paulus, 1997, v. 1, (Sl 4), p. 40).

            Inclino-me a crer que os salmos aludidos por Paulo eram canções de adoração feitas por compositores cristãos, que eram cantadas, ainda que não estritamente, com acompanhamento musical. O seu estilo se assemelhava e se inspirava no Saltério e, outras vezes, ao invés de composições contemporâneas, fosse o próprio Saltério cantado. Aqui, talvez tenhamos a força da herança judaica na adoração cristã modelada pelo Espírito Santo.

[3]u(/mnoj (* Ef 5.19; Cl 3.16)(Uma canção, hino de louvor a Deus (Sl 40.3; Is 42.10), “hino festivo de louvor”). O verbo é u(mne/w (* Mt 26.30; Mc 14.26; At 16.25; Hb 2.12) (Cantar o louvor de, cantar um hino, celebrar (Sl 22.22)). No Novo Testamento, ambas as palavras estão associadas a cânticos a Deus. A origem da palavra é incerta, sendo aplicada no grego clássico desde Homero englobando uma gama variada de formas poéticas, sendo aplicada à poesia cantada e recitada, referindo-se geralmente aos hinos cantados em honra a alguma divindade ou a heróis. (Veja-se: Platão, A República,7. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, [1993], 607a. p. 475).

[4]%)dh (* Ef 5.19; Cl 3.16; Ap 5.9; 14.3 (2 vezes); 15.3) (“Ode”, “canção”, “hino”). O verbo é #)/dw (* Ef 5.19; Cl 3.16; Ap 5.9; 14.3; 15.3) (“Cantar”). Em Ap 15.3 o verbo e o substantivo ocorrem conjuntamente referindo-se ao cântico de Moisés (Cf. Ex 15.1; Sl 145.7) e ao cântico do Cordeiro. %)dh é uma contração de a)oidh/ (arte de cantar, canto), proveniente de a)ei/dw, do verbo #)/dw (cantar, celebrar, elogiar). Das três esta é a palavra mais genérica. A %)dh pode ser de lamentação, queixa ou alegria. A palavra na literatura grega secular não estava limitada ao “cântico” do ser humano, podendo referir-se a todo tipo de sons: ao coaxar do sapo, ao som de um instrumento (harpa), o silvo produzido pelo vento nas árvores ou de uma pedra. Talvez “hinos” e “cânticos”descritos por Paulo refiram-se principalmente aos cânticos neotestamentários, estando refletido neles elementos da herança grega – considerando que muitos dos cristãos tinham esta formação –, no entanto, sob a direção do Espírito, tendo como elemento aferidor a Palavra de Cristo (Cl 3.16).

[5]Vejam-se, por exemplo: wv|dh,: In: Horst Balz; Gerhard Schneider, eds. Exegetical Dictionary of New Testament,Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1994 (Reprinted), v. 3, p. 505-506; M. Rutenfranz, u(/mnoj: In: Horst Balz; Gerhard Schneider, eds. Exegetical Dictionary of New Testament,Grand Rapids, v. 3, p. 392-393; H.M. Best; D. Huttar, Música, Instrumentos Musicais: In: Merrill C. Tenney, org. ger., Enciclopédia da Bíblia, São Paulo: Cultura Cristã, 2008, v. 4, p. 415-416; K.H. Bartels, Cântico: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento,São Paulo: Vida Nova, 1981, v. 1, p. 346-351; G. Delling, u)/mnoj, etc.: In: Gerhard Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, 8. ed. (reprinted) Grand Rapids, Michigan: WM. B. Eerdmans Publishing Co., 1982, v. 8, p. 489-503; H. Schlier, a)/dw, o(/dh/: In: Gerhard Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, v. 1, p. 163-165; R.P. Martin, Hinos, Fragmentos de Hinos, etc.: In: Gerald F. Hawthorne, et. al. eds. Dicionário de Paulo e Suas Cartas, São Paulo: Vida Nova; Paulus; Loyola, 2008, p. 630.

[6] Calvino admitindo a dificuldade de se estabelecer a distinção (João Calvino, Efésios,São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 5.19), p. 165), diz: salmoé o que é cantado com acompanhamento de algum instrumento musical; o hino é uma canção de louvor sem acompanhamento de instrumento; a ode além de louvor, contém exortações e outros assuntos (Cf. John Calvin, Epistle to the Colossians,Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, (Calvin’s Commentaries, v. 21), 1996 (Reprinted), (Cl 3.16), p. 217). Hodge, com discernimento, comenta: “O antigo uso das palavras yalmo/j, u(/mnoj, %)dh, parece ter sido tão livre como o é para nós o uso dos termos ingleses correspondentes salmo, hino e cântico. Um salmo era um hino, e um hino, um cântico. Apesar disso, havia uma distinção entre eles” (Charles Hodge, “Epistle to the Ephesians,” The Master Christian Library, Version 8 (CD-ROM), (Albany, OR: Ages Sofware, 2000), (Ef 5.19), p. 205). Vejam-se também as pertinentes observações de MacArthur (John F. MacArthur Jr., et. al. Ouro de Tolo? Discernindo a Verdade em uma Época de Erro, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2006, p. 127-129).

[7] No paganismo a relação entre o excesso de bebida e a prática religiosa era comum, especialmente nos serviços ao generoso (Thomas Bulfinch, O Livro de Ouro da Mitologia: (A idade da fábula): histórias de deuses e heróis, 12. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000, p. 39ss.) e astuto (Cf.  Thomas Bulfinch, O Livro de Ouro da Mitologia, p. 196ss) deus Dionísio (Dio/nusoj) – (= Baco (Ba/kxoj), filho de Zeus (= Júpiter, na sua forma latina) –, na bacanália, estando a embriaguez também associada à nudez, danças eróticas e prostituição (Ver: Ap 17.2). Segundo a mitologia grega Baco fazia uso do vinho para embriagar pessoas a fim de que estas realizassem os seus desejos, inclusive de conquista. “Não representava apenas o poder embriagador do vinho, mas também suas influências benéficas e sociais, de maneira que era tido como o promotor da civilização, legislador e amante da paz” (Thomas Bulfinch, O Livro de Ouro da Mitologia, p. 14).

Paulo Matos Peixoto resume algumas características das festividades em homenagem a Baco: “As festas báquicas foram as primeiras representações teatrais, ainda inconscientes do sentido que continham. Baco, o deus boêmio, precisava de movimento, de alegria, de tumulto, de máscaras, de paixões. Seus adeptos, guiados pelos seus sacerdotes, organizam festas ao ar livre, com baile, vinho, mulheres, a fim de proclamar-se o delírio, atributo do deus da alegria desenfreada. Entre interjeições de alegria, sons de flautas, cantos confusos, a multidão representava a corte de Baco, o seu legendário reino de prazeres e uma forma de vida que era a sua característica” (Paulo Matos Peixoto em Introdução à obra: Teatro Grego, São Paulo: Paumape, 1993, p. 10-11. Mais detalhes sobre as bacanálias podem ser encontrados em Jocelyn Santos, Deuses Antigos, Rio de Janeiro: Livros do Mundo Inteiro, 1970, p. 91-92). “O culto a Dionísio, com sua ênfase sobre a embriaguez religiosa, era conhecido em Corinto e em outros lugares, e é razoável ver dentro destes textos das Epístolas do NT a preocupação no sentido de traçar uma linha divisória entre todos esses cultos helenísticos, e a vida do cristão no Espírito” (J.P. Budd, Sóbrio: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento,São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 4, p. 518). As festas em homenagem a Baco eram tão promíscuas que o Senado romano as proibiu por decreto; no entanto, o costume estava tão arraigado no povo que a lei foi ineficaz. (Cf. P. Commelin, Mitologia Greco-Romana, Salvador, Ba.: Aguiar & Souza, 1957, p. 72; Jocelyn Santos, Deuses Antigos, p. 91). Baco, na mitologia esteve associado à música e ao teatro: “Afirma-se que foi Baco o primeiro a estabelecer uma escola de Música; as primeiras representações teatrais foram feitas em sua homenagem” (P. Commelin, Mitologia Greco-Romana, p. 69). Ele foi sagrado protetor das belas-artes, especialmente do teatro (Ver: Baco: Dicionário de Mitologia Greco-Romana, São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 21). Devido à elaboração musical e ao embelezamento do culto oferecido ao deus Apolo, ele foi escolhido como o patrono dos cantores e poetas. (Cf. Johannes Quasten, Music & Worship in Pagan & Christian Antiquity, p. 3). (Quanto à origem etimológica dos nomes “Dionísio” e “Baco”, ver: Junito de Souza Brandão, Mitologia Grega, 2. ed. Petrópolis, RJ.: Vozes, 1988, v. 2, p. 113).

[8] a)swti/a é constituída de duas palavras: a = “não” & sw/zw = “libertar”, “salvar”, “curar”. O sentido literal da palavra é de alguém que não consegue poupar, economizar; é, portanto, perdulário, dissoluto. (* Ef 5.18; Tt 1.6; 1Pe 4.4. (Veja-se: LXX: Pv 28.7)). A forma adverbial a)sw/toj (dissolutamente), é empregada em sua única aparição no Novo Testamento, para se referir ao modo de vida do filho pródigo longe de sua casa (Lc 15.13). (Veja-se: Richard C. Trench, Synonyms of the New Testament,Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1985 (Esta edição reproduz a 9ª, de 1880), p. 53-58). Portanto, a palavra está geralmente associada ao modo devasso e libertino de viver. Ela descreve a condição da mente e do corpo que foram arrastados à uma situação vil sendo decorrente daí uma total insensibilidade espiritual. (Veja-se: R.C.H. Lenski, St. Paul´s Epistle to the Ephesians,Peabody, Massachusetts:Hendrickson Publishers, (Commentary on the New Testament), 1998, (Ef 5.18), p. 618). C. S. Lewis faz um oportuno contraste: “Precisamos divertir-nos. Mas nossa alegria deve ser aquela (aliás, a maior de todas) que existe entre pessoas que sempre se levaram a sério – sem leviandade, sem superioridade, sem presunção (…) a leviandade parodia a alegria” (C.S. Lewis, Peso de Glória,2. ed. São Paulo: Vida Nova, 1993, p. 23).

[9]Calvino comenta: “(Paulo) quer dizer, pois, que os beberrões logo perdem a modéstia e não mais conseguem conter-se pelo pudor: que onde o vinho reina, o desregramento prevalecerá: e, consequentemente, que todos aqueles que cultivam algum respeito pela moderação ou decência, devem fugir e abominar a bebedice” (João Calvino, Efésios, (Ef 5.18), p. 164). Em outro contexto, Calvino escreve: “Beber com excesso não é só indecoroso num pastor, mas geralmente resulta em muitas coisas ainda piores, tais como rixas, atitudes néscias, ausência de castidade e outras que não carecem de menção” (João Calvino, As Pastorais, (1Tm 3.3), p. 88).

[10] Ver D.M. Lloyd-Jones, Cantando ao Senhor, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2003, p. 47ss.

[11] John F. MacArthur Jr., et. al. Ouro de Tolo? Discernindo a Verdade em uma Época de Erro, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2006, p. 137.

[12]Agostinho, Comentário aos Salmos, São Paulo: Paulus, (Patrística, 9/3), 1998, (Sl (102)101), v. 3, (Sl 148.17), p. 1142.

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