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Uma fé que investiga e uma ciência que crê (41) - Hermisten Maia

Uma fé que investiga e uma ciência que crê (41)

Do Iluminismo confiante na razão autônoma, surge a crítica mais mordaz concernente à capacidade dela. Todavia, é necessário que não nos iludamos. Em Kant a razão seria sempre o aferidor final e decisório. Em 1786, em um de seus escritos menores, enfatiza:

Amigos do gênero humano e do que para ele é mais sagrado! Aceitai o que, após um exame cuidadoso e honesto, vos parecer mais digno de fé quer sejam fatos, quer princípios de razão; somente não impugneis à razão o que dela faz o supremo bem na terra, isto é, o privilégio de ser a derradeira pedra de toque da verdade.[1]

            O fato é que as respostas que buscamos, ainda hoje, estão relacionadas às questões levantadas, direta ou indiretamente, pelos iluministas. Não tenhamos a pressuposição de que elas estejam totalmente superadas.[2] Por sua vez, a teologia, como todas as demais ciências, ocorre dentro da História, no tempo, com todos os seus conflitos, angústias e necessidades vitais de respostas. Realçando a atualidade das questões levantadas pelos iluministas, Tillich (1886-1965), conclui: “A maior parte de nossa vida acadêmica se baseia neles”.[3]

            O homem moderno na sua pretensa autossuficiência propõe-se a controlar todas as coisas e, quando ele considera o seu mundo perfeitamente elaborado dentro dos moldes daquilo que ele chama de “ciência”, já não há mais lugar para Deus. Quando muito, ele é retido em algum lugar sombrio da memória. Assim, Deus torna-se uma “hipótese desnecessária”,[4] e até mesmo incômoda.

O homem, esse desconhecido para si mesmo, arroga-se no direito e na possibilidade de descartar o Senhor da Glória, assumindo uma postura secular autônoma.[5] E como consequência disso, tornou-se escravo do seu próprio saber, tendo uma perspectiva equivocada da realidade, ficando encarcerado pelos próprios valores deste século, que ele consciente ou inconscientemente – mas não impunemente – ajudou a formular. O homem tornou-se prisioneiro da sua própria concepção da realidade. O seu conceito o aprisiona, não o real.

Gilson (1884-1978) comenta:

É importante percebermos que a humanidade está condenada a viver cada vez mais sob o feitiço de uma nova mitologia científica, social e política, exceto se exorcizarmos resolutamente estas noções confusas cuja influência na vida moderna se torna aterradora.[6]

             De fato, a centralização do homem, a busca de sua essência como fim último de todas as coisas, não poderia nem pode gerar valores permanentes. Ainda hoje, curiosamente, somos muitas vezes levados a pensar no homem “como a medida de todas as coisas”: como se a solução de todos os seus problemas estivesse simplesmente na capacidade de olhar para dentro de si. Ora, não estamos dizendo que a reflexão e a autoanálise não sejam relevantes, antes, o que estamos propondo, é que a essência do homem não pode ser simplesmente determinada em si e por si. O significado da vida não pode ser criado a partir de referências materiais e seculares. É preciso uma dimensão verdadeiramente teológica para que possamos entender melhor o que somos, o sentido da vida e o nosso papel nesse mundo.

A genuína antropologia deve ser sempre e incondicionalmente teocêntrica![7] Toda afirmação teológica tem implicações antropológicas-existenciais, quer explícitas, quer implícitas.[8]

            Ao que parece, com a Revolução Industrial, a ciência tornou-se cada vez mais “materialista”, passando a estar preocupada com as necessidades aparentemente emergentes, distanciando-se da concepção de Deus que soava para alguns como um estorvo no caminho do verdadeiro pensar.

            A “moderna ciência moderna” seguindo essa linha de raciocínio, considerou Deus desnecessário: “Deus não pertence ao campo da explicação científica e portanto, na ciência como tal, essa hipótese não conta”, conforme observou Richardson (1905-1975).[9]

O irônico disso tudo, como assinala Van Riessen (1911-2000), é que a “todo-poderosa” ciência que não tinha lugar para Deus, também não encontrou lugar para o próprio homem.[10]

Bavinck (1854-1921) interpreta:

A filosofia, que depois de um período de decadência entra em período de fortalecimento, sempre cria uma expectativa extraordinária e exagerada. Nessas épocas ela vive a esperança de que por meio de uma séria investigação ela resolverá o enigma do mundo. Mas sempre depois dessa fervente expectativa chega a velha desilusão. Em vez de diminuir, os problemas aumentam com os estudos. O que parece estar resolvido vem a ser um novo mistério, e o fim de todo o conhecimento é então novamente a triste e às vezes desesperadora confissão de que o homem caminha sobre a terra em meio a enigmas, e que a vida e o destino são um mistério.[11]

            Calvino (1509-1564), comentando o desejo humano por lisonjas, acrescenta que, quando o homem se detém em si mesmo, não prosseguindo em suas investigações, permanece absorto na sua ignorância.

Nada há que a natureza humana mais cobice que ser afagada de lisonjas. E, por isso, onde ouve seus predicados revestir-se de grande realce, para esse rumo propende com demasiada credulidade. Portanto, não é de admirar que, neste ponto, se haja transviado, de maneira profundamente danosa, a maioria esmagadora dos homens. Ora, uma vez que é ingênito a todos os mortais mais do que cego amor de si mesmos, de muito bom grado se persuadem de que nada neles existe que, com justiça, deva ser abominado. Destarte, mesmo sem influência de fora, por toda parte obtém crédito esta opinião de todo vã: que o homem é a si amplamente suficiente para viver bem e venturosamente (…). Daí, porque tem sido, destarte, acolhido com o grande aplauso de quase todos os séculos cada um que, com seu encômio, haja mui favoravelmente exaltado a excelência da natureza humana (…). Portanto, se alguém dá ouvidos a tais mestres que nos detêm em somente mirarmos nossas boas qualidades, não avançará no conhecimento de si próprio, ao contrário, precipitar-se-á na mais ruinosa ignorância.[12]

Maringá, 7 de maio de 2020.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] I. Kant, Que significa orientar-se no pensamento?: In: I. Kant, A paz perfeita e outros opúsculos, Lisboa: Edições 70, (1988), p. 54.

[2] Cf. E. Cassirer, A Filosofia do Iluminismo, Campinas, SP.: Editora da UNICAMP., 1992, p. 15.

[3] Paul Tillich, Perspectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e XX,São Paulo: ASTE, 1986, p. 47.

[4]Veja-se: Hendrik van Riessen, Enfoque Cristiano de la Ciencia, 2. ed. Países Bajos: FELIRE, 1990, p. 42ss. “Sempre que a ciência, motivada por suas pressuposições, dê a solução definitiva e determinada, não terá lugar para Deus. Não há lugar para a oração, nem para a graça divina, nem para a bênção de Deus. Se uma sociedade planificada é cientificamente correta, já não necessita de Deus. Cada passo que se dá nessa direção, faz o mundo mais profano e o distancia ainda mais de Deus” (Hendrik van Riessen,Enfoque Cristiano de la Ciencia, p. 43).

[5] Harold O.J. Brown, captou bem a polarização da mente moderna ao dizer que: “A mente secular do século XX vacila entre dois extremos, sendo que os dois resultam na rejeição do Criador e na negação da criação” (Harold O.J. Brown, A Opção Conservadora. In: Stanley Gundry, ed. Teologia Contemporânea,São Paulo: Mundo Cristão, 1983, p. 367).

[6]Étienne Gilson, Deus e a Filosofia, Lisboa: Edições 70, (2003), p. 96.

[7] Segundo me parece, uma compreensão semelhante pode ser encontrada em Wrigth, quando assevera: “Como cristãos informados pela Palavra de Deus, percebemos que o mundo não pode interpretar-se a si próprio. O verdadeiro conhecimento do ‘eu’ envolve primeiro o ouvir Deus falar na Escritura. Os cristãos também têm concluído que o valor da vida de uma pessoa não depende da capacidade de examinar-se a si mesma em termos de alguma filosofia, mas do lugar que a pessoa tem no plano de Deus. Contudo o autoexame é tão difícil agora como sempre foi, e todos nós temos áreas em nossa vida que não examinamos bem de perto. As pressuposições ainda determinam nossos destinos, mesmo a despeito de alguma inconsistência no caminho” (R.K. McGregor Wright, A Soberania Banida: Redenção para a cultura pós-moderna,São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1998, p. 15).

[8]Ver: J. Spykman, Teología Reformacional: Un Nuevo Paradigma para Hacer la Dogmática,Jenison, Michigan: The Evangelical Literature League, 1994, p. 218-221.

[9]Alan Richardson, La Biblia En La Edad de la Ciencia, Buenos Aires: Editorial Paidós, (1975), p. 32.

[10]Veja-se: Hendrik van Riessen, Enfoque Cristiano de la Ciencia,p. 17. No campo filosófico, apesar da variedade e evolução de pesquisas neste assunto, há evidente confissão da ignorância a respeito do homem. Scheler (1874-1928), escreveu em abril de 1928, um mês antes de seu falecimento: “Em nenhum momento da história o homem foi tão problemático para si mesmo quanto é hoje” (Max Scheler, El puesto del hombre em el Cosmos, Buenos Aires: Editorial Losada, 1943, p. 26 (Veja-se também o prólogo do autor, à p. 22-23).

Heidegger (1889-1976), figura proeminente do existencialismo alemão, por exemplo, escreveu em 1950 mencionando a nossa ignorância a respeito do homem:

“Nenhuma época acumulou tão numerosos e diversos conhecimentos sobre o homem como a atual. Nenhuma época conseguiu expor seu conhecimento acerca do homem de forma mais penetrante e atraente como a nossa. Nenhuma época conseguiu tornar esse conhecimento tão pronta e facilmente acessível. E, sem dúvida, em nenhuma época se tem sabido menos acerca do que é o homem que a nossa. Em nenhuma época tem sido o homem tão misterioso como a atual” (Martin Heidegger, Kant y el problema de la metafisica,  México: Fondo de Cultura Económica, © 1954. Primera edición electrónica, 2014, Localização 3600 de 6034).

Jung (1875-1961), do mesmo modo, disse: “O homem ainda é um desconhecido, tanto para si mesmo como para os outros” (Carl G. Jung, Psicologia e Religião,Petrópolis, RJ.: Vozes, 1978, § 140, p. 87).

            Braudel (1902-1985) comenta que quando o sociólogo Edgar Morin se despediu do Partido Comunista, logo depois, disse: “O marxismo, meu velho, estudou a economia, as classes sociais; é maravilhoso, meu velho, mas ele se esqueceu de estudar o homem” (Fernand Braudel, Gramática das Civilizações, 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 315). Talvez falte às ciências do homem o instrumental necessário para o seu autoexame. (Cf. Edgar Morin, Ciência com consciência, 7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p. 20). Nas palavras de Vieira, “O homem, filho do tempo, reparte com o mesmo a sua ciência, ou a sua ignorância; do presente sabe pouco, do passado menos, e do futuro nada” Pe. António Vieira, Historia do Futuro, 3. ed.?, Lisboa: J.M.C. Seabra e T. Q. Antunes, 1855, p. 6).

[11] Herman Bavinck, Our Reasonable Faith,4. ed. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1984, p. 20.

[12] João Calvino, As Institutas,II.1.2. Ele contrapõe esta prática à real necessidade que temos de meditar na providência de Deus: “Por mais diligentemente uma pessoa se põe a meditar sobre as obras de Deus, ela só pode alcançar as superfícies ou as bordas delas. Embora sendo assim de tão grande altitude, muito acima de nosso alcance, devemos, não obstante, diligenciar-nos, o quanto nos for possível, por aproximar-nos dela mais e mais em contínuo progresso; ao vermos também a mão divina estendida para descortinar-nos, o quanto nos é oportuno, aquelas maravilhas que por nós mesmos somos incapazes de descobrir” (João Calvino, O Livro dos Salmos,v. 2, São Paulo: Paracletos, 1999, (Sl 40.5), p. 223).

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