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Uma fé que investiga e uma ciência que crê (37) - Hermisten Maia

Uma fé que investiga e uma ciência que crê (37)


4.5. Ciência e Religião no Pensamento Moderno (Continuação)

             Copérnico, por exemplo, escreveu o seu trabalho demonstrando insatisfação com o geocentrismo (1514?) (Pequeno Comentário). Este manuscrito só circulou entre amigos de extrema confiança. No entanto sua obra só ganharia evidência – ainda que restrita[1] – com a sua edição ampliada em maio de1543,[2] com o título As Revoluções dos Orbes Celestes. Esta publicação tornou-se possível porque em 1539, Copérnico fora procurado pelo jovem professor de matemática na Universidade de Wittenberg,[3] o protestante Georg Joachim Lauschen, conhecido como Rheticus (1514-1576),[4] que juntamente com outros amigos de Copérnico o convencera, não sem relutância,[5] já que era perfeccionista, a ampliar e publicar o seu trabalho primitivo. Ele foi publicado em Nuremberg (1543) na tipografia de um amigo de Rheticus, do impressor luterano Johannes Petreiusean Petri (1497-1550),[6] que se especializaria na publicação de tratados de teologia e de direito canônico.[7]

Copérnico já paralítico do lado direito e mentalmente cansado, não pode dirigir a edição de sua obra. Rheticus, por sua vez, tendo que deixar Nuremberg, “não pode coordenar pessoalmente a impressão da obra. A tarefa foi delegada a Andréas Osiander (1498-1552), que, numa decisão infeliz, redigiu uma introdução, impressa sem assinatura.[8] Passou-se a atribuir erroneamente a Copérnico uma afirmação feita por Osiander, segundo a qual a ideia de que a Terra girava ao redor do Sol era um simples artifício matemático – e não uma descrição da realidade física”.[9] Ou seja: ele retoma as concepções de Simplício (527-565), Giovanni Filopono (c. 530) e de Tomás de Aquino (1225-1274), que consideravam a matemática um simples cálculo por meio do qual elaboravam-se hipóteses que pouco ou nada tinham a ver com a realidade.[10] Diz Osiander no Prefácio:

Nem tampouco é necessário que estas hipóteses sejam verdadeiras nem até sequer verossímeis, mas bastará apenas que conduzam um cálculo conforme às observações… No entanto é bem evidente que esta ciência ignora pura e simplesmente as causas dos movimentos aparentemente não uniformes. E se imagina algumas, pois certamente imagina muitas, não o faz de maneira nenhuma com o objetivo de persuadir alguém de que as coisas são assim, mas apenas para conseguir uma base correta de cálculo.[11]

No entanto o sistema de Copérnico era mais do que isso, era uma ciência que se relacionava à concepção real do sistema astronômico, não uma mera especulação abstrata.[12]

            Em seu trabalho, Copérnico desloca a Terra do centro do universo passando a explicar os movimentos dos planetas a partir da centralidade do Sol. Deste modo, ele “destruiu os próprios alicerces da ordem cósmica tradicional, com uma estrutura hierárquica”.[13] A Terra, no caso, seria apenas o centro de rotação da Lua.[14] Em suas leituras, Copérnico encontrou evidências de que outros filósofos bem anteriores a ele já haviam sugerido o movimento da Terra, tais como Niceta, Filolau, Heraclides do Ponto e Ecfanto.[15] Contudo, como bom católico que era, submete a sua obra ao Papa Paulo III[16] entendendo que “as Matemáticas escrevem-se para os matemáticos, aos quais também esta minha obra”.[17]

            O fato é que, com Copérnico, a astronomia deu um salto tão grande que algumas décadas depois, ele seria lembrado apenas pela sua percepção correta a respeito do heliocentrismo – colocando no seu devido lugar as concepções fundamentais da astronomia da qual a astronomia moderna dependeu fundamentalmente – e não por outras de suas colaborações que já estariam superadas.[18] No entanto, além de uma revolução científica, a descoberta de Copérnico causou, segundo Kuhn, uma mudança de perspectiva do homem no universo, gerando controvérsias, para limitar a duas, no campo religioso e filosófico.[19] “A Revolução Copernicana foi (…) parte de uma transição na escala de valores do homem ocidental”, resume Kuhn.[20]

            Como naquela época não havia como provar de forma irrefutável o movimento da Terra, obviamente as ideias de Copérnico – então meras hipóteses[21] – não foram aceitas por todos, nem mesmo entre os astrônomos.[22] Além de suscitar questões sérias quanto à interpretação de textos bíblicos que apontavam para a estabilidade da Terra (Jó 10.12-14; Sl 19.5-6; 104.5; Ec 1.4-5). Aliás, esta questão era mais relevante para protestantes do que para os católicos devido à sua perspectiva exegética das Escrituras.[23] No entanto, a concepção de Copérnico com o passar do tempo, contribuiu para o reexame, por parte dos protestantes, de diversos textos das Escrituras, tendo o “princípio da acomodação” enfatizado por Calvino (1509-1564) contribuído de forma decisiva para a interação entre a compreensão das Escrituras e as ciências naturais.[24] Posteriormente, este princípio interpretativo seria empregado pelo Carmelita Paolo Antonio Foscarini (1565-1616) e o próprio Galileu, sendo, contudo rejeitado pela igreja romana como uma inovação sem precedentes.[25]

Maringá, 27 de abril de 2020.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]“Fora do mundo astronômico o De Revolutionibus criou inicialmente muito pouca agitação” (Thomas Kuhn, A Revolução Copernicana, p. 201).

[2]O seu trabalho fora concluído em 1536. (Cf. Stephen Hawking, Os Gênios da Ciência: Sobre os ombros do Gigante: as mais importantes ideias e descobertas da física e da astronomia, Rio de Janeiro: Elsevier Editora, 2005, p. 4). Segundo a tradição, Copérnico recebeu a obra impressa no seu leito de morte. (Entre outros: Paolo Rossi, O Nascimento da Ciência Moderna na Europa, p. 119; Stephen Hawking, Os Gênios da Ciência, p. 3,6; Alister E. McGrath, Historical Theology: An Introduction to the History of Christian Thought, Massachusetts: Blackwell Publishers, 1998, p. 207; (Cf. Hal Hellman, Grandes Debates da Ciência: dez das maiores contendas de todos os tempos, São Paulo: UNESP., 1999, p. 25.

[3] Que havia renunciado esta cátedra a fim de poder estudar com Copérnico (Cf. Stephen Hawking, Os Gênios da Ciência: Sobre os ombros do Gigante: as mais importantes ideias e descobertas da física e da astronomia, Rio de Janeiro: Elsevier Editora, 2005, p. 4).

[4] “O primeiro discípulo de Copérnico” (Thomas Kuhn, A Revolução Copernicana, p. 202; Paolo Rossi, O Nascimento da Ciência Moderna na Europa, p. 118). Que se tornou protegido de Melanchton (Cf. R. Hooykaas, A Religião e o Desenvolvimento da Ciência Moderna, p. 159).

[5] Ver o seu prefácio dedicado ao Papa Paulo III. Nicolau Copérnico, As Revoluções dos Orbes Celestes, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, (1984), p. 5-7.

[6] Cf. Stephen Hawking, Os Gênios da Ciência: Sobre os ombros do Gigante: as mais importantes ideias e descobertas da física e da astronomia, Rio de Janeiro: Elsevier Editora, 2005, p. 4; Lucien Febvre; Henry-Jean Martin, O Aparecimento do Livro,São Paulo: Hucitec., 1992, p. 391; John Hale, A Civilização Europeia no Renascimento, Lisboa: Editorial Presença, 2000, p. 506; Edward Rosen, Copernicus and the Scientific Revolution, Malabar, Florida: Robert E. Krieger Publishing Co., 1984, p.119.

[7]Cf. Lucien Febvre; Henry-Jean Martin, O Aparecimento do Livro,São Paulo: Hucitec., 1992, p. 276.

[8] Sem a permissão de Copérnico (Cf. entre outros: Thomas Kuhn, A Revolução Copernicana, p. 203; John Hale, A Civilização Europeia no Renascimento, Lisboa: Editorial Presença, 2000, p. 506).

[9]Alexandre Cherman, Sobre os ombros de Gigantes: Uma História da Física. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004 p. 31. Do mesmo modo: Stephen Hawking, Os Gênios da Ciência: Sobre os ombros do Gigante: as mais importantes ideias e descobertas da física e da astronomia, Rio de Janeiro: Elsevier Editora, 2005, p. 6; Philip Schaff; David S. Schaff, History of the Christian Church,v. 8, p. 678. Ver o documento in: Nicolau Copérnico, As Revoluções dos Orbes Celestes, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, (1984), p. 1-2; B.A. Gerrish, The Reformation and the Rise of Modern Science. In: Jerald C. Brauer, ed., The Impact of the Church upon its Culture, Chicago: The University of Chicago Press, 1968, v. 2, p. 262.

[10] Cf. Paolo Rossi, O Nascimento da Ciência Moderna na Europa, p. 161.

[11] Osiander In: Nicolau Copérnico, As Revoluções dos Orbes Celestes, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, (1984), p. 1,2.

[12] Cf. R. Hooykaas, The Reception of Copernicanism in England and the Netherlands. In: The Anglo-Dutch Contribution to the Civilization of Early Modern Society: An Anglo-Netherlands Symposium, London: British Academy by Oxford University Press, 1976, p. 33.

[13] Ver Alexandre Koyré, Do Mundo Fechado ao Universo Infinito, 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p. 37-38.

[14] Cf. Paolo Rossi, O Nascimento da Ciência Moderna na Europa, p. 116-117.

[15]Ver o seu prefácio dedicado ao Papa Paulo III. Nicolau Copérnico, As Revoluções dos Orbes Celestes, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, (1984), p. 8-9, 30. Ver também: Alexandre Koyré, Do Mundo Fechado ao Universo Infinito, 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p. 37.

[16] Só para recordar um pouco, o papa Paulo III (1534-1549) – Alessandro Farnese (1468-1549), filho de importante família italiana, tendo recebido uma forte e extensa formação humanista – Foi ele quem encomendou os afrescos da capela Sistina a Miguel Ângelo (1475-1564)] em Roma e Florença – destacou-se como o papa da Contrarreforma (Cf. Joaquim Veríssimo Serrão, História de Portugal, Lisboa: Editora Verbo, 1982, v. 3, p. 52). Também foi ele quem – subornado pelo rei de Portugal, D. João III – estabeleceu definitivamente a Inquisição em Portugal por meio da Bula Cum ad nihil magis (23/05/1536) (Cf. Alexandre Herculano, História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal, Portugal: Publicações Europa América (s.d.), v. 1, “Apêndices”, p. 156; Joaquim Veríssimo Serrão, História de Portugal, v. 3, p. 52). Em 1535, D. João III escreveu ao papa Paulo III solicitando que estabelecesse a “inquisição em meus Reinos e senhorios sobre os Cristãos-novos, que novamente são convertidos, que sou certificado que não vivem como devem” (Documento In: J. Lúcio de Azevedo, História dos Cristãos-Novos Portugueses,3. ed. Porto: Clássica Editora, 1989, p. 443 [apêndice]). Novinsky, diz: “Afinal D. João III venceu, oferecendo ao papa uma enorme fortuna em troca da permissão para agir sem interferência de Roma.” (Anita Novinsky, A Inquisição,10. ed. São Paulo: Brasiliense, 1996,p. 35)]. Ele também quem organizou a Ordem dos jesuítas em 27 de setembro de 1540, por meio da bula Regimini Militantis Ecclesiae, batizando-a com o nome de “Companhia de Jesus” (Jean Lacouture, Os Jesuítas: 1. Os Conquistadores, Porto Alegre, RS.: L &PM, 1994, 106).

[17] Ver o seu prefácio dedicado ao Papa Paulo III. Nicolau Copérnico, As Revoluções dos Orbes Celestes, p. 10.

[18] Curiosamente Russel diz que “não há nada em suas especulações que não pudesse haver ocorrido a um astrônomo grego” (Bertrand Russell, História da Filosofia Ocidental, 2. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967, v. 3, p. 46). De fato, já que o “o Universo de Copérnico, no século XVI, ainda era finito por essência” (Alistair Crombie; John North, Universo: In: Jacques Le Goff; Jean-Claude Schmitt, coords. Dicionário Temático do Ocidente Medieval,Bauru,SP.; São Paulo, SP.: Editora da Universidade Sagrado Coração; Imprensa Oficial do Estado, 2002, v. 2, p. 590).

[19]“A sua teoria planetária e a consequente concepção de um universo centrado no Sol foram os agentes da transição da sociedade ocidental medieval para a moderna, porque pareciam afetar a relação do homem com o universo e com Deus.” […]

“A Revolução Copernicana está entre os episódios mais fascinantes de toda a história da ciência. (…) A civilização ocidental contemporânea é mais dependente, tanto no que se refere à filosofia do quotidiano como ao pão que comemos, de conceitos científicos do que qualquer civilização anterior.” [Thomas Kuhn, A Revolução Copernicana, Lisboa: Edições 70, (2002), p. 17,18]. Compare a opinião de Reale e Antiseri, que seguem Kuhn com a de Collingwood e Hooykaas: Giovanni Reale; Dario Antiseri, História da Filosofia,2. ed. São Paulo: Paulus, 1990, v. 2, p. 212-213 com R.G. Collingwood, Ciência e Filosofia: a ideia de natureza, 5. ed. Lisboa: Editorial Presença, (1986), p. 108-109; R. Hooykaas, The Reception of Copernicanism in England and the Netherlands. In: The Anglo-Dutch Contribution to the Civilization of Early Modern Society: An Anglo-Netherlands Symposium, London: British Academy by Oxford University Press, 1976, p. 34.

[20]Thomas Kuhn, A Revolução Copernicana, p. 17.

[21] Cf. Lucien Febvre, O Problema da Descrença no Século XVI, Lisboa: Editorial Início, 1970, p. 448.

[22] Cf. Philip Schaff; David S. Schaff, History of the Christian Church, v. 8, p. 678-679.

[23]Cf. Rienk Vermij, The Calvinist Copernicans: The reception of the new astronomy in the Dutch Republic, 1575-1750, Amsterdam: Royal Netherlands Academy of Arts and Sciences, 2002, p. 243.

[24] Cf. Alister E. McGrath, Historical Theology: An Introduction to the History of Christian Thought, Massachusetts: Blackwell Publishers, 1998, p. 208ss.; Alister E. McGrath,Fundamentos do Diálogo entre Ciência e Religião, São Paulo: Loyola, 2005, p. 23-25. Do mesmo modo: R. Hooykaas, A Religião e o Desenvolvimento da Ciência Moderna, p. 160. Hooykaas, por exemplo, demonstra que Kepler recorreu a um argumento semelhante ao de Calvino (Ver: R. Hooykaas, A Religião e o Desenvolvimento da Ciência Moderna, p. 161). Do mesmo modo, ver: Heiko A. Oberman, The Dawn of the Reformation: Essays in Late Medieval and Early Reformation Thought, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1992 (Reprinted), p. 184-185; 264-265; Augustus Nicodemus Lopes, A Bíblia e Seus Intérpretes: uma breve história da interpretação, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004, p. 166-167.

[25]Cf. Alister E. McGrath, Historical Theology: An Introduction to the History of Christian Thought, Massachusetts: Blackwell Publishers, 1998, p. 211-213. Inter alia Paolo Rossi, O Nascimento da Ciência Moderna na Europa, p. 160-161; R. Hooykaas, The Reception of Copernicanism in England and the Netherlands. In: The Anglo-Dutch Contribution to the Civilization of Early Modern Society: An Anglo-Netherlands Symposium, London: British Academy by Oxford University Press, 1976, p. 42.

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