Uma fé que investiga e uma ciência que crê (34)
4.4. Calvino, contrário às ciências?
Calvino ao longo dos séculos tem sido alvo dos mais hostis ataques resultantes: a) da não aceitação do seu pensamento, o que é perfeitamente natural considerando como um sistema de pensamento passível de críticas e objeções; b) da não compreensão de suas ideias pela falta de estudo dos seus próprios trabalhos, o que é grave considerando a seriedade da atividade e, simplesmente, em parte decorrentes deste ponto; c) fruto de lendas que são criadas e transmitidas geração após geração. Uma delas diz respeito à suposta declaração de Calvino: “Quem irá se aventurar a colocar a autoridade de Copérnico acima da autoridade do Espírito Santo?”.
Os eruditos McGrath e Hooykaas mostram que esta frase atribuída a Calvino – que vem sendo repetida irresponsavelmente – foi forjada no século XIX pelo deão anglicano F.W. Farrar (1831-1903).[1] De fato, o respeitado cientista Thomas Kuhn (1922-1996), cita as palavras atribuídas a Calvino respaldando-se em fontes secundárias.[2] Cita também Lutero – que, numa conversa informal teria chamado Copérnico de “tolo” (Narr) – e Melanchton usando igualmente fontes secundárias.[3] A partir daí, Kuhn, cometendo uma petição de princípio começa a desenvolver teorias a respeito do porquê os protestantes combateram a teoria de Copérnico.[4] Indo ainda mais longe, Kuhn supõe que a Igreja romana combateu as teorias de Copérnico por causa da pressão protestante, estando a igreja fragilizada pelas reformas internas.[5]
O fato é que dentro da documentação disponível, podemos afirmar que Calvino nunca citou Copérnico. Que a sua concepção do universo seja geocêntrica, isso é natural.[6] Como poderia ser diferente se os próprios astrônomos tiveram dificuldade de aceitar as concepções de Copérnico?[7] A sua questão não era exegética, antes, de simples senso comum.[8]
É bem provável que ele conhecesse as teorias de Copérnico[9] contudo, jamais o menciona. A sua exposição bíblica quando esbarra na questão do movimento da Terra reflete uma compreensão “pré-copernicana”,[10] que era a dominante no século XVI, seguindo a teoria de Ptolomeu [Claudius Ptolemaeus (87-150 A.D)] que, sem dúvida, foi o astrônomo que mais exerceu influência na antiguidade. A bem da verdade, esta questão era extremamente periférica em sua teologia. Para Calvino, o que importava – e aqui não há nenhum juízo de valor – é que o mundo foi criado por Deus e que fomos colocados nele para glorificar ao Criador e Senhor de todas as coisas.[11] Deus é o Criador e preservador de toda a Criação.
Comentando Jr 10.12, escreve: “o centro da terra não é a parte principal de criação; segue consequentemente que a Terra foi suspensa no ar, porque agradou Deus fazê-lo”.[12] Expondo Is 40.22: “A Terra não permanece firme e permanentemente em seu lugar por qualquer outro motivo senão porque está sustentada pelo poder de Deus”.[13]
Calvino era na realidade fascinado com a Criação de Deus, entendendo que nela vemos aspectos da Glória do Criador, sendo o homem o ponto mais magnífico. Comentando o salmo 8, escreve de forma extasiada:
Existe diante de nossos olhos, em toda a ordem da natureza, os mais ricos elementos a manifestarem a glória de Deus, mas, visto que somos inquestionavelmente mais poderosamente afetados com o que nós mesmos experimentamos, Davi, neste Salmo, com grande propriedade, expressamente celebra o favor especial que Deus manifesta no interesse da humanidade. Posto que ele, de todos os objetos que se acham expostos à nossa contemplação, é o mais nítido espelho onde podemos contemplar sua glória.[14]
Portanto, cabe ao homem apreciar e estudar a natureza visto que nela temos refletida o espelho da sabedoria divina:
Nas coisas que Ele criou, Deus, portanto, mantém diante de nós nítido espelho de sua esplendorosa sabedoria. Em resultado, qualquer indivíduo que desfrute de pelo menos uma minúscula fagulha de bom senso, e atenta para a terra e outras obras divinas, se vê aturdido por candente admiração por Deus. Se os homens chegassem a um genuíno conhecimento de Deus, pela observação de suas obras, certamente que viriam a conhecer a Deus de uma forma sábia, ou daquela forma de adquirir sabedoria que lhes é natural e apropriada.[15]
Em outro lugar:
Em toda a arquitetura de seu universo, Deus nos imprimiu uma clara evidência de sua eterna sabedoria, munificência e poder; e embora em sua própria natureza nos seja ele invisível, em certa medida se nos faz visível em suas obras. O mundo, portanto, é com razão chamado o espelho da divindade, não porque haja nele suficiente clareza para que os homens alcancem perfeito conhecimento de Deus, só pela contemplação do mundo, mas porque ele se faz conhecer aos incrédulos de tal maneira que tira deles qualquer chance de justificarem sua ignorância. (…) O mundo foi fundado com esse propósito, a saber: para que servisse de palco à glória divina.[16]
O mundo foi criado para a felicidade do homem: “O mundo foi originalmente criado para este propósito, que todas as partes dele se destinem à felicidade do homem como seu grande objeto”.[17]
A ciências nos ajudam a compreender o poder e a sabedoria de Deus revelados na criação:
Por isso que no conhecimento de Deus está posto o fim último da vida bem-aventurada, para que a ninguém cerrado fosse o acesso à felicidade, não só implantou Deus na mente humana essa semente de religião[18] a que temos nos referido, mas ainda de tal modo Se há revelado em toda a obra da criação do mundo, e cada dia meridianamente Se manifesta que não podem eles abrir os olhos sem serem forçados a contempla-lO (…). Essa a razão porque, com finura e arte, o autor da Epístola aos Hebreus (11.3) chama aos mundos de expressões visíveis das cousas invisíveis, já que essa ordem tão admiravelmente estruturada do universo nos serve de espelho em que se possa contemplar ao Deus de outra sorte invisível. (…) Inumeráveis são, tanto no céu quanto na terra, as evidências que Lhe atestam a mirífica sabedoria. Não apenas aquelas cousas mais recônditas, a mais penetrante observação das quais se destinam a astronomia, a medicina e toda a ciência natural, senão também aquelas que saltam à vista de qualquer um, ainda o mais inculto ignorante, de sorte que nem se lhes possam os olhos abrir que lhes não sejam forçados a ser testemunhas.[19] (Grifos meus).
McGrath comentando essa última passagem diz que Calvino
Louva tanto a astronomia quanto a medicina – na verdade, ele até mesmo confessa ser um pouco invejoso delas – pelo fato delas serem capazes de uma investigação mais profunda sobre o mundo natural e, assim, revelar em evidências mais detalhadas a ordem da criação e a sabedoria do Criador. A ideia de que Calvino menosprezava Copérnico é um absoluto mito.[20]
Mesmo sem escapar do mito supracitado a respeito de Calvino e Copérnico, Woortmann compreende bem essa questão:
Calvino condenava aqueles que negligenciavam o estudo da natureza tanto quanto aqueles que, ao estudarem as obras de Deus, esqueciam o Criador. A ciência para ele, conduziria a um melhor conhecimento de Deus, e ele se referia não à contemplação piedosa da natureza, mas à atitude experimental/empírica que constituiria a ciência em seu sentido moderno.
Se o catolicismo e o luteranismo toleravam a ciência, o calvinismo a demandava, no mesmo espírito de independência, em face da autoridade que caracterizava seu pensamento teológico.[21]
Ilustrando isso, vemos que na segunda metade do século XVII o sistema de Copérnico era estudado criteriosamente na Academia de Genebra. “São examinadas todas as objeções feitas a este sistema e são refutadas com cuidado, especialmente o argumento teológico, tirado de passagens da Santa Escritura que supõe, ao leitor, uma concepção geocêntrica do universo”, diz um antigo professor da Universidade de Genebra, Charles Borgeaud (1861-1941).[22]
Maringá, 27 de abril de 2020.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1]Alister E. McGrath, A Vida de João Calvino, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004, p. 14-15 e R. Hooykaas, A Religião e o Desenvolvimento da Ciência Moderna, p. 157-158. Ver F.W. Farrar, History of Interpretation, London: Macmillan and Co., 1886, p. XVIII (Edição fac-símile feita pela Kessinger Publishing). Do mesmo modo: Klaas Woortmann, Religião e Ciência no Renascimento, Brasília, DF.: Editora Universidade de Brasília, 1997, p. 73, 74,75.
[2]A sua fonte é a obra de Andrew D. White, A History of the Warfare of Science with Theology in Christendom, New York: Appleton, 1896, v. 1, p. 127. (Ver: Thomas Kuhn, A Revolução Copernicana, p. 306). Este, por sua vez baseou-se em Farrar (Cf. R. Hooykaas, A Religião e o Desenvolvimento da Ciência Moderna, p. 157). Do mesmo modo, Bertrand Russell embarca nesta lenda sem citar fontes (Bertrand Russel, Religion and Science, New York; Oxford: Oxford University Press, (1935), 1997, p. 23; Bertrand Russell, História da Filosofia Ocidental, 2. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967, v. 3, p. 48-49).
[3]Compare as mesmas citações e o seu peso segundo a análise de R. Hooykaas, A Religião e o Desenvolvimento da Ciência Moderna, p. 158-159. Inter alia Lucien Febvre, O Problema da Descrença no Século XVI, Lisboa: Editorial Início, 1970, p. 448; Edward Rosen, Copernicus and the Scientific Revolution, Malabar, Florida: Robert E. Krieger Publishing Co., 1984, p. 119-120; 182-184.
[4] Thomas Kuhn, A Revolução Copernicana, p. 210ss. Como exemplo, o autor diz: “Os líderes protestantes, como Lutero, Calvino e Melanchthon foram os que mais citaram a Escritura contra Copérnico e exigiram a repressão contra os copernicanos” (p. 212). O autor só não demonstra a sua tese. Paolo Rossi, que sabiamente se valeu de Hooykaas, mesmo não observando devidamente o princípio da acomodação de Calvino, não caiu na armadilha de colocar Calvino citando Copérnico (Vejam-se: Paolo Rossi, O Nascimento da Ciência Moderna na Europa, p. 122; Paolo Rossi, A Ciência e a Filosofia dos Modernos: aspectos da Revolução Científica, São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992, p. 100).
[5]Thomas Kuhn, A Revolução Copernicana, p. 214.
[6] Veja-se, por exemplo: Juan Calvino, La Majestad de Dios: In: Sermones Sobre Job, Jenison, Michigan: T.E.L.L., 1988, (Sermon nº 11), (Job 25.1-6), p. 135.
[7] Ver: Thomas Kuhn, A Revolução Copernicana, p. 201ss.; Paolo Rossi, O Nascimento da Ciência Moderna na Europa, p. 124-126; Lucien Febvre, O Problema da Descrença no Século XVI, Lisboa: Editorial Início, 1970, p. 450.
[8]Ver o seu comentário: João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1 (Sl 19.4-6), especialmente, p. 420-421. Inter alia R. Hooykaas, The Reception of Copernicanism in England and the Netherlands. In: The Anglo-Dutch Contribution to the Civilization of Early Modern Society: An Anglo-Netherlands Symposium, London: British Academy by Oxford University Press, 1976, p. 34; B.A. Gerrish, The Reformation and the Rise of Modern Science. In: Jerald C. Brauer, ed., The Impact of the Church upon its Culture, Chicago: The University of Chicago Press, 1968, v. 2, p. 261,264; Edwin A. Burtt, The Metaphysical Foundations of Modern Science, 2. ed. Revised,New York: Doubleday & Company, 1932, p. 36ss.; John Dillenberger, Protestant Thought & Natural Science: A Historical Interpretation, London: Collins, 1961, p. 29ss.
[9] Ou não. Ver: James Orr, Calvin’s Attitude Towards and Exegesis of the Scriptures. In: R.E. Magill, ed., Calvin Memorial Addresses, Richmond VA.: Presbyterian Committee of Publication, 1909, p. 97; B.A. Gerrish, The Reformation and the Rise of Modern Science. In: Jerald C. Brauer, ed., The Impact of the Church upon its Culture, Chicago: The University of Chicago Press, 1968, v. 2, p. 261).
[10]Ver: John Calvin, Sermon on 1 Cor. 10-19-24, Ioannis Calvini Opera quae supersunt omnis, 49:677, in Corpus Reformatorum, ed. By Baum, Cunitz and Reuss (Brunswick and Berlin, 1863-1900). Apud Robert White, Calvin and Copernicus: The Problem Reconsidered: In: Calvin Theological Journal, v. 15, Nº 2, November de 1980, p. 236-237.
[11] “Sabemos que somos postos sobre a terra para louvar a Deus com uma só mente e uma só boca, e que esse é o propósito de nossa vida” [João Calvino, O Livro dos Salmos,(Sl 6.5), v. 1, p. 129]. Veja-se também, Catecismo de la Iglesia de Ginebra,Perg. 1: In: Catecismos de la Iglesia Reformada,Buenos Aires, La Aurora, 1962.
[12] John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), v. 9/2, (Jr 10.12), p. 34.
[13]John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), v. 8/1, (Is 40.22), p. 227.
[14]João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 8.1), p. 157.
[15]João Calvino, Exposição de 1 Coríntios,São Paulo: Paracletos, 1996, (1Co 1.21), p. 62.
[16] João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 11.3), p. 300-301.
[17]João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1, (Sl 8.6), p. 172.
[18] Posteriormente (1651) Thomas Hobbes (1588-1679) usaria essa mesma expressão: “Verificando que só no homem encontramos sinais, ou frutos da religião, não há motivo para duvidar que a semente da religião se encontra também apenas no homem, e consiste em alguma qualidade peculiar, ou pelo menos em algum grau eminente dessa qualidade, que não se encontra em outras criaturas vivas.” (Thomas Hobbes, Leviatã,São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 14), 1974, p. 69).
[19]João Calvino, As Institutas, Campinas, SP.; São Paulo: Luz para o Caminho; Casa Editora Presbiteriana, 1985, I.5.1-2.
[20]Alister E. McGrath, A Vida de João Calvino, p. 287.
[21]Klaas Woortmann, Religião e Ciência no Renascimento, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997, p. 80-81.
[22]Charles Borgeaud, Historie de l’Université de Genève: L’Académie de Calvin – 1559-1798. Genève: Georg & Co: Libraires de L’Université, 1900, p. 416.