“Eu lhes tenho dado a tua Palavra” (Jo 17.1-26) (30)
Observem que a orientação de João não cria uma indisposição para com aqueles que supostamente anunciavam a verdade, antes, nos adverte quanto à necessidade de cautela na interpretação do que está sendo anunciado como procedente de Deus.
O nosso desejo de servir a Deus não nos deve tornar presas fáceis de qualquer ensinamento ou doutrina. Precisamos cientificar-nos se aquilo que é-nos transmitido procede ou, não, de Deus. Para este exame, temos as Escrituras Sagradas como fonte de todo conhecimento revelado a respeito de Deus e do que Ele deseja de nós. A Escritura é a melhor intérprete de si mesma. Uma correta interpretação das Escrituras define a verdade.[1] Só teremos a Palavra de Deus se a interpretação corresponder ao propósito do Espírito naquele texto. Portanto, temos de examiná-la com sincero desejo de ouvir a voz de Deus e, em oração (Sl 119.18), contando com imprescindível iluminação do Espírito.[2]
Foi assim que a nobre Igreja de Beréia procedeu ao ouvir Paulo e Silas. Ainda que aqueles irmãos tenham recebido a Palavra com avidez, isto não os impediu de examinar[3] “as Escrituras todos os dias para ver se as cousas eram de fato assim” (At 17.11). “Eles combinavam receptividade com questionamento crítico”.[4]
Dessa maneira, como há outras vozes querendo nos afastar da verdade, apresentando um caminho que, à primeira vista, pode nos parecer mais convidativo e tentador, devemos perseverar no caminho verdadeiro.
Paulo recrimina o esmorecimento dos gálatas que começando a crer corretamente na graça de Deus, agora, passam a viver, como se fosse possível, pelas obras. O legalismo judaico se constituía num impedimento aos judeus cristãos: “Vós corríeis bem; quem vos impediu (e)gko/ptw)[5] de continuardes a obedecer à verdade (a)lh/qeia)?” (Gl 5.7).
Os falsos mestres, privados da verdade,[6] procuram desviar-nos da verdade pervertendo os ensinamentos da Palavra. Paulo cita dois falsos mestres de seu tempo, Himeneu[7] e Fileto, que, seguindo ensinamentos gnósticos, com uma linguagem corrosiva, eliminavam a esperança na ressurreição futura, pervertendo a fé de alguns:
Além disso, a linguagem deles corrói como câncer (ga/ggraina);[8] entre os quais se incluem Himeneu e Fileto. Estes se desviaram da verdade (a)lh/qeia), asseverando que a ressurreição já se realizou, e estão pervertendo (a)natre/pw = “arruinar”, “virar”[9]) a fé a alguns. (2Tm 2.17-18).
A falsa doutrina é contagiante. Paulo exorta a Tito com veemência a respeito dos insubordinados, especialmente judeus: “É preciso fazê-los calar, porque andam pervertendo (a)natre/pw) casas inteiras, ensinando o que não devem, por torpe ganância” (Tt 1.11).
Por causa dos falsos mestres o caminho da verdade será infamado, escreve Pedro:
Assim como, no meio do povo, surgiram falsos profetas (yeudoprofh/thj),[10] assim também haverá entre vós falsos mestres (yeudodida/skaloj), os quais introduzirão, dissimuladamente, heresias destruidoras, até ao ponto de renegarem o Soberano Senhor que os resgatou, trazendo sobre si mesmos repentina destruição. E muitos seguirão as suas práticas libertinas (a)se/lgeia), e, por causa deles, será infamado (blasfhme/w)[11] o caminho da verdade” (2Pe 2.1-2).
Pedro diz que o presbítero como pastor do rebanho deve estar em condições de alimentar o seu rebanho com a Palavra e, também, saber combater àqueles que tentarão seduzir os fiéis com “palavras fictícias (plasto/j)” (2Pe 2.3).
O falso mestre é aquele que ensina a mentira, o engano: cria imagens que nada são para corromper seus ouvintes, conduzindo-os a negar o próprio Senhor Jesus Cristo e, também, à viverem libertinamente (a)se/lgeia), ou seja, de modo dissoluto e lascivo.[12] Por causa disso, o caminho do Evangelho seria caluniado, reprovado, “blasfemado”.
A mensagem desses falsos mestres consiste numa corrupção do Evangelho. Plasto/j parece ter o sentido aqui de palavras artisticamente elaboradas, moldadas, sugestivas, porém, falsas, forjadas em seu próprio proveito, e, que por isso mesmo estão em oposição à verdade. Curiosamente este é o termo de onde vem a nossa palavra “plástico”.[13] O ensino cristão envolve arte, mas não “arte plástica” para com a verdade.
Nós cristãos, precisamos treinar os nossos ouvidos: “Porque o ouvido prova (!x;B’) (bahan) (examina, testa prova) as palavras, como o paladar, a comida” (Jó 34.3/Jó 12.11).
Maringá, 25 de fevereiro de 2020.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1]Veja-se: John MacArthur, Por que ainda prego a Bíblia após quarenta anos de ministério: In: Mark Dever, ed., A Pregação da Cruz, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 138.
[2] “O Espírito de Deus, de quem emana o ensino do evangelho, é o único genuíno intérprete para no-lo tornar acessível” (João Calvino, Exposição de 1 Coríntios,São Paulo: Paracletos, 1996, (1Co 2.14), p. 93). F.F. Bruce (1910-1990), está correto, ao afirmar que “os crentes possuem um padrão permanente e um modelo no uso que nosso Senhor fez do Antigo Testamento, e uma parte do atual trabalho do Espírito Santo no tocante aos crentes é abrir-lhes as Escrituras, conforme o Cristo ressurreto as abriu para os dois discípulos no caminho para Emaús (Lc 24.25ss)” (F.F. Bruce, Interpretação Bíblica: In: J.D. Douglas, ed. org. O Novo Dicionário da Bíblia, São Paulo: Junta Editorial Cristã, 1966, v. 2, p. 753). Veja-se também, J. Calvino, As Institutas,I.9.3; II.8.7.
[3] A palavra traduzida por “examinando” é a)nakri/zw, que tem o sentido de “fazer uma pesquisa cuidadosa”, um “exame criterioso”, “inquirir”. (* Lc 23.14; At. 4.9; 12.19; 17.11; 24.8; 28.18; 1Co 2.14,15 (duas vezes); 4.3 (duas vezes),4; 9.3; 10.25,27; 14.24). Conforme vemos em Lc 23.14; At 4.9 e 24.8, o verbo era usado para “investigações judiciais”. “Este verbo implica em integridade e ausência de preconceito. Desde então, o adjetivo ‘bereano’ tem sido aplicado a pessoas que estudam as Escrituras com imparcialidade e cuidado” (John R.W. Stott, A Mensagem de Atos: até os confins da terra, São Paulo: ABU Editora, 1994, (At 17.11), p. 308).
[4] John R.W. Stott, A Mensagem de Atos: até os confins da terra, (At 17.11), p. 308.
[5]No seu emprego militar a palavra tinha o sentido de cortar uma árvore para causar um impedimento ou, abrir uma vala que obstaculizasse temporariamente o caminho do inimigo, daí a palavra tomar o sentido de “impedimento”, “empecilho”, “obstáculo”.
[6] “Altercações sem fim, por homens cuja mente é pervertida e privados da verdade (a)lh/qeia), supondo que a piedade é fonte de lucro” (1Tm 6.5).
[7] Paulo se referira a este como que alguém que naufragou na fé (1Tm 1.19-20).
[8]Esta palavra só ocorre aqui em todo o Novo Testamento. É deste termo que provém palavra gangrena.
[9]A palavra é usada no sentido literal em Jo 2.15: “Em tendo feito um azorrague de cordas, expulsou todos do templo, bem como as ovelhas e os bois, derramou pelo chão o dinheiro dos cambistas, virou (a)natre/pw) as mesas”.
[10] Jesus Cristo já nos alertara sobre eles. Vejam-se: Mt 7.15; 24.11,24; Lc 6.26. O apóstolo João falaria mais tarde de sua realidade presente (1Jo 4.1).
[11] O verbo Blasfhme/w, que tem o sentido de “injuriar”, “difamar”, “insultar”, “caluniar”, “maldizer”, “falar mal”, “falar para danificar”, etc., é formado de duas palavras, Bla/yij derivada de Bla/ptw = “injuriar”, “prejudicar” (* Mc 16.18; Lc 4.35) e Fhmi/ = “falar”, “afirmar”, “anunciar”, “contar”, “dar a entender”. A Blasfêmia tem sempre uma conotação negativa, de “maldizer”, “caluniar”, “causar má reputação” etc., contrastando com Eu)fhmi/a (“boa fama” * 2Co 6.8) e Eu)/fhmoj (“boa fama” * Fp 4.8) (Eu)/ & fh/mh). No Fragmento 177 de Demócrito, lemos: “Nem a nobre palavra encobre a má ação, nem é a boa ação prejudicada pela má palavra (Blasfhmi/a)”. Paulo diz que o mal testemunho dos judeus contribuía para que os gentios blasfemassem o nome de Deus (Rm 2.24, citando Is 52.5). Compare este fato com a orientação de Paulo, 1Tm 6.1; Tt 2.5.
A falsa doutrina propicia a prática da blasfêmia (1Tm 6.3,4), bem como os falsos mestres (2Pe 2.1-2,10-12).
[12]A)se/lgeia ocorre nos seguintes textos do Novo Testamento: Mc 7.22; Rm 13.13; 2Co 12.21; Gl 5.19; Ef 4.19; 1Pe 4.3; 2Pe 2.2,7,18; Jd 4.
[13]A palavra grega plastiko/j é derivada do verbo pla/ssw, cujo advérbio utilizado por Pedro é plasto/j. A nossa palavra plástico vem do grego (plastiko/j) passando pelo latim (plasticus), sempre de forma transliterada, significando aquilo “que tem propriedade de adquirir determinadas formas sensíveis, por efeito de uma ação exterior”.