“Eu lhes tenho dado a tua Palavra” (Jo 17.1-26) (6)
2.3. Jesus Cristo, a única fonte infalível e completa
1) A Criação como fonte de conhecimento de Deus
Deus como causa primeira de todo o conhecimento, proporciona ao homem por intermédio da sua Criação, a natureza, a oportunidade e responsabilidade de conhecer a realidade do mundo físico.
2) Limites da natureza & limites do homem pecador
Devemos nos lembrar de que este conhecimento não é completo nem absolutamente claro, visto que o pecado pôs seu selo sobre a Criação, obscurecendo o entendimento do homem e, a própria natureza perdeu parte da sua eloquência primeva.[1]
Meeter (1886-1963) escreve:
Contudo, ainda hoje a natureza, é um espelho no qual se refletem as glórias de Deus. Sem embargo, por causa do pecado, pode-se dizer que este espelho está deformado. Como é bem sabido, um espelho côncavo reflete as coisas de uma forma grotesca e distinta de como realmente são”.[2]
Todavia, a História, a Natureza e o homem, como parte desta, refletem algo do seu Criador, “o homem, por haver sido criado à imagem de Deus, nos revela muito sobre o ser do Criador”, resume Meeter.[3] (Sl 139.14).
Deus expressa o seu pensamento e a sua vontade no mundo, na Criação, envolvendo o homem com a manifestação visível da sua glória que é proclamada, apesar do pecado, de forma fecunda nas obras da Criação (Sl 19.1; At 14.17). Por isso, os homens são indesculpáveis (Rm 1.19,20).[4]
Calvino (1509-1564) acentua que,
A aparência do céu e da terra compele até mesmo os ímpios a reconhecerem que algum criador existe (…). Certamente que a religião nem sempre teria florescido entre todos os povos, se porventura as mentes humanas não se persuadissem de que Deus é o Criador do mundo.[5]
Deus, o mundo e o homem são as três realidades com as quais toda a ciência e toda filosofia se ocupam.[6] Pois bem, se Deus não tivesse primeiramente, de forma livre e soberana se revelado (Sl 115.3; Rm 11.33-36) – concedendo ao homem o universo como meio externo de conhecimento que funciona com as suas leis próprias e regulares –, toda e qualquer ciência seria impossível. O mundo, inclusive o homem, é o grande laboratório de todas as ciências. Só que, quem “construiu” este laboratório foi Deus, e deixou ao homem a responsabilidade de estudá-lo, descobrindo os “enigmas” que estão por trás das leis que funcionam de acordo com as prescrições do seu Criador.
3) Deus continua a dar testemunho por meio da Criação
Deus não criou o mundo apenas para satisfazer a curiosidade humana. Deus o fez como testemunho da sua glória: “A grande finalidade da criação foi a manifestação da glória de Deus”, instrui-nos Pink (1886-1952).[7]
Deus ainda hoje não deixou de dar testemunho da sua existência e bondoso cuidado para com o homem (At 14.17)[8].[9] Deus está ativo, preservando a sua criação para o fim proposto por ele mesmo.[10]
“Deus não é mero espectador do universo que Ele criou. Ele está presente e ativo em todas as partes, como o fundamento que sustenta tudo e o poder que governa tudo o que existe”, enfatiza Boettner (1901-1990).[11]
A Bíblia atesta este fato amplamente. (Vejam-se: Ne 9.6; At 17.28; Ef 4.6; Cl 1.17; Hb 1.3).[12] Deus faz todas as coisas “conforme o conselho da sua vontade” (Ef 1.11/Sl 115.3).
O homem natural pode não saber disso, pode não aceitar e até combater tal “absurdo”, entretanto, o que o homem pode fazer contra a verdade? (2Co 13.8).
O que são os argumentos que tentam negar a existência de Deus, senão fruto de uma falsa interpretação da revelação Geral de Deus?!
Calvino (1509-1564), discorrendo sobre a revelação de Deus na natureza, diz:
Em toda a arquitetura de seu universo, Deus nos imprimiu uma clara evidência de sua eterna sabedoria, munificência e poder; e embora em sua própria natureza nos seja ele invisível, em certa medida se nos faz visível em suas obras. O mundo, portanto, é com razão chamado o espelho da divindade, não porque haja nele suficiente clareza para que os homens alcancem perfeito conhecimento de Deus, só pela contemplação do mundo, mas, porque ele se faz conhecer aos incrédulos de tal maneira que tira deles qualquer chance de justificarem sua ignorância. (…) O mundo foi fundado com esse propósito, a saber: para que servisse de palco à glória divina.[13]
Este mundo é semelhante a um teatro onde Senhor exibe diante de nós um surpreendente espetáculo de sua glória.[14]
Após o mundo ser criado, o homem foi nele posto como em um teatro, para que ele, contemplando acima e abaixo as maravilhosas obras de Deus, reverentemente adorasse seu Autor.[15]
4) Jesus Cristo como a Palavra final
Somente Jesus Cristo é a Revelação completa e infalível do Pai. Nele não há ambiguidade, confusão ou parcialidade. Tudo que Deus nos quer revelar, manifestou em Cristo. Ele é a medida da revelação de Deus. Nele temos a revelação e a única possibilidade concreta e definitiva de conhecimento real.
Sire (1933-2018) escreveu de modo esclarecedor:
Jesus Cristo é a revelação final e especial de Deus. Porque Jesus Cristo era verdadeiramente Deus Ele nos mostrou mais plenamente com quem Deus era semelhante do que qualquer outra forma de revelação. Porque Jesus foi também completamente homem, Ele falou mais claramente a nós do que pode fazê-lo qualquer outra forma de revelação.[16]
O Senhor declara: “Tudo me foi entregue por meu Pai. Ninguém conhece o Filho, senão o Pai; e ninguém conhece o Pai, senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar (a)pokalu/ptw)” (Mt 11.27).
Jesus Cristo diz aos seus discípulos: “Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim”(Jo 14.6). Na sequência, Filipe, seu discípulo, ainda não entendendo perfeitamente o que Ele dissera, suplica: “…. Senhor, mostra-nos o Pai, e isso nos basta”(Jo 14.8).
Obtém, então, a resposta:
Filipe, há tanto tempo estou convosco, e não me tens conhecido? Quem me vê a mim vê o Pai; como dizes tu: Mostra-nos o Pai? Não crês que eu estou no Pai e que o Pai está em mim? As palavras que eu vos digo não as digo por mim mesmo; mas o Pai, que permanece em mim, faz as suas obras. (Jo 14.9-10).
A maneira como Jesus Cristo mostrou o Pai é superior a todas as outras revelações. Ele O conhece perfeitamente. É eternamente o Seu Filho. Ele é o Deus encarnado. Jesus Cristo é o clímax da revelação de Deus. É a Palavra Final de Deus. Nele temos não uma metáfora ou um sinal, antes, temos o próprio Deus que se fez homem na história.
É o que nos diz de forma belíssima, o escritor de Hebreus:
Havendo Deus, outrora, falado, muitas vezes e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias, nos falou pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, pelo qual também fez o universo. Ele, que é o resplendor da glória e a expressão exata do seu Ser, sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder, depois de ter feito a purificação dos pecados, assentou-se à direita da Majestade, nas alturas, tendo-se tornado tão superior aos anjos quanto herdou mais excelente nome do que eles. (Hb 1.1-4).
“No Filho temos a revelação última de Deus. Da mesma forma como é verdade que quem viu o Filho viu o Pai, também é verdade que quem não viu o Filho, não viu o Pai”, escreve Hendriksen (1900-1982).[17] Jesus Cristo, a plenitude da graça encarnada. É a medida da revelação; o seu padrão e apelo final!
Bavinck (1854-1921) exulta:
A plenitude do ser de Deus é revelada nEle. Ele não apenas nos apresenta o Pai e nos revela Seu nome, mas Ele nos mostra o Pai em Si mesmo e nos dá o Pai. Cristo é a expressão de Deus e a dádiva de Deus. Ele é Deus revelado a Si mesmo e Deus compartilhado a Si mesmo, e, portanto, Ele é cheio de verdade e também cheio de Graça.[18]
Não há nenhum outro modo de conhecer genuína e salvadoramente a Deus, senão por meio de Jesus Cristo, que é a imagem perfeita e radiante de Deus; é o Deus encarnado.
Maringá, 04 de fevereiro de 2020.
Rev. Hermisten Maia
Pereira da Costa
[1]Veja-se: C.H. Spurgeon, Sermões Sobre a Salvação,São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1992, p. 72.
[2] H.H. Meeter, La Iglesia y Estado,3. ed. Grand Rapids, Michigan: TELL., (s.d), p. 28.
[3]H.H. Meeter, La Iglesia y Estado,p. 26. Calvino comentou: “Por esta causa, alguns dos filósofos antigos chamaram, não sem razão, ao homem, microcosmos, que quer dizer mundo em miniatura; porque ele é uma rara e admirável amostra do grande poder, bondade e sabedoria de Deus, e contém em si milagres suficientes para ocupar nosso entendimento se não desdenharmos considerá-los” (J. Calvino, As Institutas,I.5.3). Comentando Gênesis 5.1, Calvino diz que Moisés repetiu o que ele havia dito antes, porque“a excelência e a dignidade desse favor não poderia ser suficientemente celebrada. Foi sempre uma grande coisa, que o principal lugar entre as criaturas foi dado ao homem” (John Calvin, Commentaries on The First Book of Moses Called Genesis,Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1996 (Reprinted), v. 1, p. 227. (Veja-se também: J. Calvino, As Institutas,II.1.1).
[4] “Porquanto o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou. Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas. Tais homens são, por isso, indesculpáveis” (Rm 1.19-20).
[5]João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 11.3), p. 299.Veja-se também: R.C. Sproul, Somos todos teólogos: uma introdução à Teologia Sistemática, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2017, p. 36-37. (Vejam-se: João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 11.3), p. 299; R.C. Sproul, Estudos bíblicos expositivos em Romanos, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, p. 31-40).
[6]Herman Bavinck, The Philosophy of Revelation,New York: Longmans, Green, and Company, 1909, p. 83.
[7] A.W. Pink, Deus é Soberano,São Paulo: Fiel, 1977, p. 84.
[8]“Contudo, não se deixou ficar sem testemunho de si mesmo, fazendo o bem, dando-vos do céu chuvas e estações frutíferas, enchendo o vosso coração de fartura e de alegria”(At 14.17).
[9] “A finalidade de conhecer a Deus através de sua criação é inerente à vocação do homem na terra” (Hendrik van Riessen, Enfoque Cristiano de la Ciencia, 2. ed. Países Bajos: FELIRE, 1990, p. 64).
[10]Preservação é o ato contínuo de Deus de sustentar a existência do que Ele mesmo criou. A própria efemeridade das coisas depende de Deus que as trouxe à existência. Sem a criação e preservação de Deus, nada existe. O que existe e enquanto existe é pelo poder de Deus.
Isto significa que a Criação de Deus não tem poderes em si mesma para autoexistir. Se não fosse, a matéria seria autônoma, qualidade que pertence única e exclusivamente a Deus. Sem a sustentação do Senhor, o universo inteiro, tudo o que existe fora de Deus deixaria de existir. O escritor de Hebreus, registra: “Ele, que é o resplendor da glória e a expressão exata do seu Ser, sustentando (fe/rw) todas as coisas pela palavra do seu poder, depois de ter feito a purificação dos pecados, assentou-se à direita da Majestade, nas alturas” (Hb 1.3).
A ideia de “sustentação” no texto (fe/rw = “levar”, “carregar”), além de preservação, é a de fazer com que as coisas sigam o seu rumo, o seu propósito determinado por Deus; “encerra a ideia de controle ativo e deliberado da coisa que se carrega de um lugar a outro” (Wayne A. Grudem, Teologia Sistemática, São Paulo: Vida Nova, 1999, p. 248. “Sustentar é usado no sentido de cuidar e de conservar toda a criação em seu próprio estado. Ele percebe que tudo se desintegraria instantaneamente se não fosse sustentado por sua munificência” (João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, (Hb 1.3), p. 36).
Turretini (1623-1687) interpreta corretamente: “Se foi glorioso para Deus criá-las, não deve ser-lhe inconveniente velar por elas. Não só isso: como as criou, assim ele se obriga a conservá-las e continuamente, uma vez que jamais abandona sua obra, senão que está perpetuamente presente com ela, para que não mergulhe outra vez na nulidade” (François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 627). Para um estudo mais detalhado, veja-se: Hermisten M.P. Costa, O homem no Teatro de Deus: providência, tempo, história e circunstância, Eusébio, CE.: Peregrino, 2019, p. 107-126.
[11]L. Boettner, La Predestinación,Grand Rapids, Michigan: TELL. (s.d.), p. 33.
[12]Veja-se: Confissão de Westminster,Cap. V.
[13] João Calvino, Exposição de Hebreus, (Hb 11.3), p. 300-301.
[14]João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1996, (1Co 1.21), p. 63.
[15] John Calvin, Commentaries on The First Book of Moses Called Genesis,Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1996 (Reprinted), v. 1, p. 64.
[16]James W. Sire, O Universo ao Lado, São Paulo: Hagnos, 2004, p. 40.
[17]William Hendriksen, O evangelho de João, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004, (Jo 14.9) p. 657.
[18]Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara d’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 25-26.