O Pensamento Grego e a Igreja Cristã: Encontros e Confrontos – Alguns apontamentos (19)
5.1. A Trindade essencialmente sábia
Segundo Cícero (106-43 a.C.) e Diógenes Laércio (3º séc. d.C.),[1] foi Pitágoras (VI-V séc. a.C.) quem atribuiu o “título” de “filósofo” a si mesmo. Quando o príncipe Leonte perguntou a Pitágoras em que arte era versado, respondeu-lhe que em nenhuma. Era filósofo. Ainda segundo Cícero, Pitágoras achava por demais pretensiosa a denominação de Sofo/j, preferindo substituí-la por Filo/sofoj, passando então, a usá-la para si.[2] Este sentido ético e religioso também é encontrado em Sócrates (469-399 a.C.).[3] Platão (427-347 a.C.) e Sócrates (469-399 a.C.) contrastam aFilosofi/a com a Sofi/a:[4]Esta que é a sabedoria perfeita, pertence somente a Deus; os homens, são apenas filo/sofoj, amantes da sabedoria.[5] Os Sofistas, em seu subjetivismo, plenamente justificável, diga-se de passagem, desejam reduzir a sabedoria à arte discursiva, retórica, arte que pode ser ensinada com o fim de persuadir, sem maiores compromissos com a verdade.[6] Enquanto que para Platão a sabedoria é uma virtude prática, para Aristóteles (384-322 a.C.), ela é teórica, nos permitindo chegar à verdade das primeiras causas.[7]
No tempo dos Sofistas e de Sócrates (469-399 a.C.), o termo Filosofia era usado para se referir ao cultivo sistemático de qualquer conhecimento teórico, adquirindo em Aristóteles (384-322 a.C.), o sentido de (e)pisth/mh), “uma disciplina intelectual que procura as causas”.[8]
Paulo suplica a Deus que conceda aos efésios Espírito de sabedoria: “Para que o Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, vos conceda espírito de sabedoria (sofi/a) e de revelação (a)poka/luyij) no pleno conhecimento (e)pi/gnwsij) dele” (Ef 1.17).
Paulo ora para que o Deus Pai, pelo Espírito que já nos selou, e o temos como penhor de nossa salvação (Ef 1.13-14), aja em nós poderosamente, nos concedendo sabedoria espiritual para podermos conhecer mais a Deus em nossa caminhada na vida cristã. Estudemos um pouco mais sobre o conceito de sabedoria nas Escrituras.
Devemos primeiramente entender que a sabedoria pertence a Deus. Esta é um dos Atributos de Deus. Todo conhecimento e toda sabedoria fazem parte da natureza essencial de Deus e se revelam em Seus atos, na Criação e em Sua Palavra.[9]
Sempre é bom reafirmar que a Revelação de Deus não é uma não-revelação, um despiste ou disfarce ou mesmo, algo inconsistente com Ele. Deus dá um testemunho idôneo de Si mesmo. Somente Deus pode fazê-lo de forma perfeita e completa.[10] O Deus que revela é o conteúdo da revelação. O Revelador é o Revelado. Deus Se revela tal qual é, contudo, de forma que possamos entender. Deus é sábio em si mesmo, expressando isso em Seus atos, Palavra e obras.
Paulo, de forma doxológica, conclui a Carta aos Romanos: “Ao Deus único e sábio (sofo/j) seja dada glória, por meio de Jesus Cristo, pelos séculos dos séculos. Amém!” (Rm 16.27).
Notemos que esta glória atribuída a Deus deve ser dada por meio de Jesus Cristo, Seu Filho amado, o único mediador entre Deus e os homens (1Tm 2.5), por meio de Quem a sabedoria de Deus se manifestou de forma encarnada. Por isso é que o culto que prestamos a Deus é por meio dos méritos de Cristo. Todo o nosso relacionamento com o Pai só é possível por meio de Jesus Cristo. Ele é o caminho de todas as bênçãos, sendo Ele mesmo a maior de todas (Rm 8.32).[11]
É assim que Paulo escrevera aos Efésios um pouco acima: “6 para louvor da glória de sua graça, que ele nos concedeu gratuitamente no Amado, 7 no qual temos a redenção, pelo seu sangue, a remissão dos pecados, segundo a riqueza da sua graça, 8 que Deus derramou abundantemente sobre nós em toda a sabedoria (sofi/a) e prudência (fro/nhsij = inteligência, bom senso, discernimento)” (Ef 1.6-8).
Da mesma forma aos Colossenses:
1Gostaria, pois, que soubésseis quão grande luta venho mantendo por vós, pelos laodicenses e por quantos não me viram face a face; 2 para que o coração deles seja confortado e vinculado juntamente em amor, e eles tenham toda a riqueza da forte convicção do entendimento, para compreenderem plenamente o mistério de Deus, Cristo, 3 em quem todos os tesouros da sabedoria (sofi/a) e do conhecimento (gnw=sij) estão ocultos (Cl 2.1-3).
Maringá, 20 de novembro de 2019.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] Cícero, Tusculanae Disputationes, V.3, 8-9 e Diógenes Laércio, A Vida de los Filosofos más Ilustres, Buenos Aires: El Ateneo, (1947), I.8. p. 24-25.
[2] Esta versão que é preservada por Cícero e Diógenes Laércio, ampara-se numa obra – Da Intercepção da Respiração – hoje perdida, de Heráclides de Ponto (c. 390-310 a.C.), antigo discípulo de Platão. (Veja-se: Diógenes Laércio, A Vida de los Filosofos mas Ilustres,I.8. p. 24-25). Todavia, duvida-se da confiabilidade deste registro (Cf. Filósofo: In: André Lalande, Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia, São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 407-408).
[3] Veja-se: Platão, Fédon, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 3), 62c-69e. p. 69-78.
[4] Por outro lado, Platão identifica a sofi/a com a e)pisth/mh. Veja-se: Platão, Teeteto,Belém, PA.: Universidade Federal do Pará, 1988, 145e. p. 7.
[5] “Chamá-los sábios (sofo/j), Fedro, me parece excessivo e só aplicável a um deus; mas o nome filósofo (filo/sofo) ou um epíteto semelhante lhes caberia melhor e seria mais apropriado” (Platão, Fedro,Rio de Janeiro: Editora Tecnoprint (Diálogos I), (s.d.), 278d. p. 267).
[6] A retórica mantém estreita relação com os sofistas. (Para mais detalhes, ver supra quando trarei da retórica sofista.
[7] Veja-se: G. Fohrer, sofi/a: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds.Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1982 (Reprinted), v. 7, p. 470-472.
[8] F.E. Peters, Termos Filosóficos Gregos: Um Léxico Histórico,2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, (1983), p. 187 (Veja-se também, Aristóteles, Metafísica, 1025b-1026a).
Platão (427-347 a.C.), entendia que a e)pisth/mh era o conhecimento verdadeiro e científico em contraposição à do/ca; sendo um corpo organizado de conhecimento, que chamaríamos de “Ciência”, caracterizando-se por ser teórico e prático. Na sua visão, a e)pisth/mh é a forma mais elevada de conhecimento humano. No Mênon, escreveu:
“E assim, pois, quando as opiniões certas (do/ca) são amarradas, transformam-se em conhecimento, em ciência (e)pisth/mh), e, como ciência, permanecem estáveis. Por esse motivo é que dizemos ter a ciência mais valor do que a opinião certa: a ciência (e)pisth/mh) se distingue da opinião certa (do/ca) por seu encadeamento racional” (Platão, Mênon, Rio de Janeiro: Editora Tecnoprint, (s.d.), 98, p. 108-109).
Quanto à perspectiva de Platão, vejam-se também, Platão, Teeteto,190a-c; Idem, Fédon,75b-76; Idem, A República,7. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, (1993), 476a-480a; 509d-511e; 514a-521b.
[9]“Que variedade, SENHOR, nas tuas obras (hf,[]m) (ma`aseh)! Todas com sabedoria as fizeste; cheia está a terra das tuas riquezas” (Sl 104.24). Na Criação podemos perceber aspectos da bondade de Deus que nos aliviam em nossas dores e limitações, nos concedendo a visão da harmoniosa variedade e beleza daquilo que criou. Nesta visão, somos conduzidos a admirar e a glorificar a Deus por Sua manifestação de sabedoria, bondade e graça para conosco.
[10]“Pois, como haja a mente humana, que ainda não pode estatuir ao certo de que natureza seja a massa do sol, que entretanto se vê diariamente com os olhos, de reduzir à sua parca medida a imensurável essência de Deus? Muito pelo contrário, como haja de, por sua própria operação, penetrar até a substância de Deus, a fim de perscrutá-la, ela que não alcança nem ao menos a sua própria? Por cuja razão, de bom grado deixemos a Deus o conhecimento de si mesmo, pois, além de tudo, como o diz Hilário, ele próprio, que não foi conhecido, a não ser por si mesmo, é de si mesmo a única testemunha idônea. Ora, deixaremos com ele o que lhe compete se o concebermos tal como ele se nos manifesta; e só poderemos inteirar-nos disto por intermédio de sua Palavra” (João Calvino, As Institutas, (2006), I.13.21).
[11]“Aquele que não poupou o seu próprio Filho, antes, por todos nós o entregou, porventura, não nos dará graciosamente com ele todas as coisas?” (Rm 8.32).