Rei e Pastor: O Senhor na visão e vivência dos salmistas (30)
O Pão nosso
Quando Deus nos fornece ordinariamente o sustento por meio de nosso trabalho, Ele está nos mantendo e preservando. Ao orarmos a Oração do Senhor estamos declarando essa confiança de que tudo provém de Deus.
Está implícita nesta oração a certeza da providência de Deus, bem como a necessidade de estarmos sempre atentos a este fato, certos de que o Senhor cuida de nós dia após dia (Sl 37.25).[1]
Calvino está correto ao dizer: “A maior de todas as misérias é o desconhecimento da providência de Deus; e a suprema bem-aventurança é conhecê-la”.[2]
Pão se refere a todas as nossas necessidades
Como é óbvio, o “pão” aqui – que era a “comida principal de Israel”[3] – significa a nossa comida em geral (1Sm 20.34; Lc 15.17), bem como todas as nossas necessidades físicas (Dt 8.3/Mt 4.4/Lc 4.4).[4] Portanto, o “pão” deve ser entendido, neste contexto, como sendo tudo aquilo que é necessário à nossa vida: alimento, saúde, lar, esposa, filhos, bom governo, paz, vestuário, bom relacionamento social etc.[5] Aprendemos, de forma decorrente, que Deus não menospreza o nosso corpo. Ele não desconsidera as nossas necessidades vitais. Jesus nos ensina a orar também por elas. Deus cuida do homem inteiro; considera-nos como de fato somos, seres integrais, que têm carências próprias que precisam ser supridas. Portanto, corpo e alma são alvos do cuidado mantenedor de Deus.
Labor e confiança em Deus
O nosso labor cotidiano não nos deve levar a confiar nele, mas, em nosso Senhor. Por outro lado, a confiança no suprimento de Deus não deve nos inspirar à ociosidade e letargia supostamente como atestado de fé mas, que na realidade, consiste em tentação a Deus.
Calvino escreve com discernimento:
Os fiéis, em contrapartida, embora vivam uma vida laboriosa, seguem sua vocação com mentes serenas e tranquilas. Assim, as mãos dos fiéis não são ociosas, mas a sua mente descansa na quietude da fé, como se estivessem dormindo.[6]
No deserto, Deus desafiou o povo a aprender essa lição por meio do maná que lhes era concedido diariamente. Antes mesmo de Deus promulgar o quarto mandamento, Ele ensinou o povo a utilizar bem o seu tempo e a confiar nele.[7] O texto Sagrado registra a instrução divina:
Eis que vos farei chover do céu pão, e o povo sairá, e colherá diariamente a porção para cada dia, para que eu ponha à prova se anda na minha lei ou não. Dar-se-á que, ao sexto dia, prepararão o que colherem, e será dois tantos do que colhem cada dia. (Ex 16.4-5).
Alguns homens, mais “previdentes”, tentaram ir além da ordem divina, guardaram o maná para o dia seguinte. Resultado: deu bicho, apodreceu e fedeu (Êx 16.20).[8] O desafio de Deus era para que o povo, manhã após manhã renovasse a sua confiança nele, aprendendo a descansar nas suas promessas, sabendo que Deus não falharia, como escreveu Pedro: “Lançando sobre ele toda a vossa ansiedade, porque ele tem cuidado de vós” (1Pe 5.7). Somos intimados a descansar em Deus, confiantes de que “assim como nosso Pai nos nutriu hoje, ele não falhará amanhã”.[9]
O Catecismo de Heidelberg (1563), comenta esta petição em forma de oração:
Digna-te suprir todas as nossas necessidades corporais, a fim de que, por esse motivo reconheçamos que és a única fonte de tudo o que é bom, e que sem tua bênção nem nosso cuidado e trabalho, nem os teus dons podem proporcionar-nos qualquer bem. Consequentemente, que retiremos a nossa confiança de todas as demais criaturas e a ponhamos somente em ti.[10]
Maringá, 24 de setembro de 2019.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1]“Fui moço e já, agora, sou velho, porém jamais vi o justo desamparado, nem a sua descendência a mendigar o pão” (Sl 37.25).
[2] João Calvino, As Institutas, I.17.11.
[3] F. Merkel, Pão: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, v. 3, p. 444.
[4] Veja-se: a brilhante análise de Barth. (Karl Barth, La Oración, Buenos Aires: La Aurora, 1968, p. 68ss.).
[5] “Aqui agora consideramos o pobre cesto de pão, as necessidades de nosso corpo e da vida temporal. É palavra breve e simples, mas também abrange muito. Pois quando mencionas e pedes ‘o pão de cada dia’, pedes tudo o que é necessário para que se tenha e saboreie o pão cotidiano, e, por outro lado, também pedes que seja eliminado tudo o que o impede. Deves, por conseguinte, abrir e dilatar bem os pensamentos, não só até o forno ou a caixa da farinha, mas até o vasto campo e a terra toda que produz e nos traz o pão de cada dia e toda sorte de alimentos. Porque se Deus não o fizesse crescer, não o abençoasse e conservasse no campo, jamais tiraríamos pão do forno e nenhum teríamos para pôr na mesa.
“Para sumariá-lo em breves palavras: esta petição quer abranger quanto pertence a toda esta vida no mundo, porque apenas por isso necessitamos de pão cotidiano. Agora, à vida não pertence apenas que o corpo tenha alimento, vestuário e outras coisas necessárias, mas também que seja de tranquilidade e em diário comércio e trato e toda sorte de atividades; em suma, tudo o que se refere às relações domésticas e vizinhais, ou civis e políticas. Pois onde houver obstáculos quanto a essas duas partes, de forma que relativamente a elas as coisas não andem como deveriam andar, aí também está obstaculizado algo que é necessário à vida, de sorte que não se pode conservá-la por tempo dilatado” (M. Lutero, Catecismo Maior:In: Os Catecismos, São Leopoldo; Porto Alegre, RS.: Concórdia; Sinodal, 1983, §§ 72-73, p. 467). Veja-se também: John Calvin, Commentary on a Harmony of the Evangelists, Matthew, Mark, and Luke, Grand Rapids, Michigan: Baker, (Calvin’s Commentaries, v. 16/1), 1981, p. 323-324.
[6] João Calvino, Salmos, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, v. 4, 2009, (Sl 127.2), p. 379.
[7] Gerard Van Groningen, O Sábado no Antigo Testamento: tempo para o Senhor, tempo de alegria Nele (II): In: Fides Reformata,4/1 (1999), p. 133-134.
[8]“Eles, porém, não deram ouvidos a Moisés, e alguns deixaram do maná para a manhã seguinte; porém deu bichos e cheirava mal. E Moisés se indignou contra eles” (Êx 16.20).
[9]João Calvino, Instrução na Fé, Goiânia, GO.: Editora Logos, 2003, Cap. 24, p. 67.
[10] Catecismo de Heidelberg, Pergunta 125. Vejam-se também: Perguntas 26-28.